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Douglas Krenak: ‘Funai vai retomar seu papel de defender os povos indígenas’

Coordenador regional da Funai defende pautas dos Tupinikim, Guarani e Botocudos em Aracruz, Linhares e Caparaó

Divulgação

O novo coordenador regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas no Espírito Santo e Minas Gerais (Funai CR MG/ES), Douglas Krenak, assume o cargo com as bênçãos dos povos das onze etnias que habitam 19 municípios nos dois estados, somando cerca de 41 mil pessoas.

Indicado também pelas lideranças capixabas para a presidente da Funai, Joenia Wapichana, ele percorreu essa semana os territórios localizados em Aracruz, norte do Estado, para conhecer mais de perto as prioridades das comunidades e iniciar o planejamento da atuação da coordenação regional junto aos “parentes” Tupinikim, Guarani e Botocudos que resistem e vivem no Espírito Santo.

O cenário político em que ele assume o cargo, mais favorável, depois de “seis anos de diversos ataques administrativos”, lhe permite afirmar o compromisso de retomar o papel da Funai, que é “atuar na defesa dos direitos e na proteção dos territórios dos povos indígenas”.

Aqui, “a Funai tem o papel importantíssimo de mostrar para o estado do Espírito Santo a importância de preservar os territórios indígenas, porque são fundamentais para a preservação de recursos hídricos, da Mata Atlântica, que é um resquício bem pequeno da cobertura original, mas o pouco que tem, é fundamental não só para os territórios indígenas, mas para a vida de todas as pessoas da região no entorno”, afirma.

Esse entendimento é necessário para “não se ter um conceito pré-formado sobre a luta desses povos”. Douglas ressalta que os territórios indígenas capixabas estão cercados por grandes empreendimentos que impactam os recursos naturais e também “a vida tradicional e espiritual” das comunidades.

A intenção é entender essa realidade e identificar como a Funai pode atuar com os povos indígenas, inclusive participando de espaços como o Fórum Permanente de Diálogo entre Empreendimentos e Comunidades Indígenas, coordenado pelo Ministério Público Federal (MPF) desde 2017, mas que pouco tem alcançado em termos de garantias de direitos. “Esses fóruns são fundamentais, mas desde que os caciques e lideranças tenham voz, não só como ouvintes e também deliberando sobre ações”, posiciona.

Evolução humana

Ações, acentua, que visam a evolução da espécie humana. “Toda população tem que entender que os povos indígenas não são contra a evolução da nossa espécie humana. Muito pelo contrário. A sociedade humana não é estática, é evolutiva, mas a gente quer entender que tipo de progresso é esse, que exclui os povos originários, mesmo eles tendo ciências fundamentais para a saúde, a evolução, o combate às violências contra o meio ambiente. Queremos participar do processo de evolução, prevenindo a destruição que está em curso”.

A questão ambiental, sublinha, é central na pauta indígena. “A causa indígena é de todos nós, porque envolve meio ambiente, que beneficia a todo mundo. Fazemos esse trabalho há milhares de anos, sem sermos reconhecidos. Precisamos ser reconhecidos como guardiões e protetores do meio ambiente, desde o início da nossa existência. São progressos que estão destruindo boa parte da população, não só os indígenas”.

Em âmbito local, Douglas ressalta a relevância do trabalho do primeiro indígena eleito vereador em Aracruz, Vilson Tupinikim, o Jaguareté (PT), especialmente a aprovação da primeira Política Municipal Indigenista do país. “O Vilson é um grande líder do povo Tupinikim. Tem uma capacidade de diálogo muito boa, uma sabedoria tradicional muito forte, herdada da sua família, e influi muito positivamente na formulação de legislações. É importante estarmos nas Câmaras de Vereadores, no Congresso, nas Assembleias Legislativas”.

Através desse trabalho legislativo em multiplicas instâncias, é possível participar do desenvolvimento das regiões. “Os indígenas querem ser incluídos no processo de evolução econômica em Aracruz e no norte do Estado, ajudando a propor ações que caminhem junto com a proteção ambiental e valorizando a vida dos povos originários. Eles têm muito a ensinar ao Espírito Santo e querem ser respeitados e serem incluídos, ao invés de estarem nesse embate. Nada mais justo do que ter um espaço de diálogo verdadeiro”.

Apoiando as comunidades, Douglas afirma que a Funai deve intervir em muitas ações que envolvem licenciamentos ambientais e regularização fundiária nas tratativas com os órgãos competentes e os empreendimentos que afetam a vida das comunidades. “Os empreendimentos que estão dentro dos territórios ou vizinhos a eles precisam se adequar a um processo padrão de licenciamento”, afirma, citando as condicionantes, compensações, planos básicos ambientais indígenas (PBAIs) e protocolos de consulta que atendam à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Questões localizadas dos Botocudos em Areal, Linhares, e dos Guarani no Caparaó também estão no radar do novo coordenador regional. “O Caparaó é uma região de perambulação do povo Guarani, que tem uma relação muito espiritual com toda a região. Eles vêm sofrendo alguns ataques e problemas com a administração do parque, recentemente tiveram uma casa de reza incendiada. A Funai vai buscar o diálogo e entender a fundo o que está se passando para diminuir esse problema”.

Em Linhares, um GT da Funai já cuida do apoio à comunidade botocuda. “Nosso país ainda faz muitos enfrentamentos contra os povos indígenas e muitos povos ainda não fizeram seu fortalecimento de ocupação de seus territórios e não deram ainda seu grito de resistência. Tem surgido em todo o território nacional muitas populações que existiam no passado, mas ficaram muito tempo sem poder dizer quem são e onde estão. Como estratégia própria de resistência, hoje muitas estão procurando seu espaço e seu território, como é o caso dos botocudos em Areal. A Funai tem um GT que faz um levantamento técnico lá para levar ao conhecimento de nosso governo federal”.

‘Colonização continua’

O termo botocudo, aliás, é polêmico, e não aceito pelos Krenak, por ter sido criado pelos português de forma pejorativa. “Nós somos o povo Borum, que significa seres humanos. A nação Borum era muito poderosa, gigantesca”. O território original envolvia desde a nascente até a foz do Rio Doce, estendendo-se até o sul da Bahia, com ramificações também até o Caparaó, pela bacia do Rio São José.

O primeiro Borum a ser conhecido como Krenak, conta, foi seu tataravô. “Ele tinha uma região de perambulação desde acima de Governador Valadares até Marilândia, no Espírito Santo. Por volta de 1910, tem fotos dele”, diz citando uma ascendência com outras lideranças ilustres, incluindo seu pai, Valdemar Krenak (ou Nadil Krenak), que trabalhou na Funai por seis anos.

Os Krenak, chamados de botocudos pelos portugueses, foram uma das etnias mais perseguidas pelo Império, como registra a Carta Régia de 1808, onde o imperador D. João VI oficializa a guerra contra “essa terrível raça antropófoga”.

O terrível adjetivo, no entanto, foi artificialmente imputado para justificar as ações incentivadas pela Coroa portuguesa. “A Carta Régia regulariza o extermínio que já vinha acontecendo: tráfico de crianças para a Europa, tráfico de crânios de guerreiros Borum, escravidão dos guerreiros, casamentos forçados, aldeamentos com escolas para destruir a cultura indígena. A Carta prevê até mesmo prêmios para quem assassinasse mais botocudos, provando a proeza com a entrega de suas cabeças às autoridades da Coroa. “A Carta Régia teve uma especificidade contra o nosso povo, porque ele guerreou muito contra o povo português. Aqui era rota de pedras preciosos, ouro, madeira, para escoar pelo Espírito Santo, e o nosso povo era um grande empecilho para isso”.

Mesmo não mais oficial, após a proclamação da República, Douglas afirma que a ofensiva contra os indígenas se perpetuou. “Nosso país tem um processo colonizador gigantesco, um processo colonizador que ainda acontece”.

Agenda em Brasília

À frente da nova gestão da Funai, que termina o processo interno de exoneração de servidores nomeados pelo governo Bolsonaro (PL) para atuar contra os indígenas, Douglas antevê o retorno do cumprimento das “obrigações constitucionais” da Fundação. “Com seu setor jurídico e técnico, em Antropologia e Meio Ambiente, mesmo com um quadro de pessoal ainda bem defasado em relação à demanda, nós vamos utilizar o que tivermos ao nosso dispor para propor mecanismos jurídicos, socioculturais e socioeconômicos necessários. As informações que coletamos aqui no Espírito Santo serão levadas para Brasília para iniciarmos esse planejamento”.

A agenda em Brasília está definida para estas terça, quarta e quinta (14 a 16), quando caciques Tupinikim e Guarani de Aracruz e procuradores da República no Estado (MPF-ES) se reunirão com a presidente da Funai, Joenia Wapichana, as ministras dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e do Meio Ambiente, Marina Silva, além da Secretaria-Geral da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).

“Organização dos povos indígenas de Aracruz, saúde, educação, segurança dos territórios indígenas”, elenca alguns dos temas previstos para as conversas com as autoridades federais o Cacique Toninho, da Terra Indígena de Comboios, um dos integrantes da comitiva capixaba. Outro ponto é o retorno de um indígena para a chefia da coordenação local de Aracruz e a reativação de um posto de apoio da Funai em Comboios.

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