TCE ignora fechamentos de escolas desde 2022 e envio de alunos para as cidades
A aprovação do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) pelo plenário do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES), nessa terça-feira (14), aponta algumas questões desconcertantes: a Corte não compreende a realidade da educação do campo e a importância das escolas multisseriadas para as comunidades rurais; ignora o fechamento de diversas escolas do campo desde 2022, com base no TAG, na época ainda nem aprovado; e atropela a mobilização popular, feita por famílias de alunos, movimentos sociais e educadores do campo de várias regiões do Estado, insistindo em um posicionamento letal para o pleno desenvolvimento das comunidades rurais e a agricultura familiar capixaba.
A leitura, triste e indignada, vem do Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces), um dos primeiros coletivos a alertar o Tribunal sobre os riscos que o TAG apresenta para a garantia do direito à Educação das famílias do campo, apresentando um parecer em que pontuou vários aspectos nocivos do acordo, as várias conclusões equivocadas contidas nos estudos que precederam a elaboração do Termo e mesmo dados sem fundamentos, como a medição das distâncias entre as escolas em linha reta, num mapa, ao invés da medição real, nas péssimas estradas sinuosas que ligam as comunidades rurais.
A única ressalva conquistada foi a exclusão das 25 escolas de assentamentos da reforma agrária do TAG, decidida dias antes da aprovação em Plenário, durante forte pressão mobilização feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na esteira da programação do Dia Internacional da Mulher. A extensão dessa exclusão para todas as demais escolas do campo estaduais, no entanto, pedida pelo Comeces, não foi acatada, o que deixa quase 50 escolas em condição de extrema vulnerabilidade e risco de fechamento, a exemplo do que já aconteceu em 2022 em alguns municípios, antes mesmo da aprovação do TAG e assinatura do acordo pelas prefeituras.
O Termo estabelece a municipalização dos anos iniciais do ensino fundamental até o final de 2023, para que o ano letivo de 2024 já tenha apenas as redes municipais responsáveis por ofertas matrículas do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. Estabelece também que os anos finais, do sexto ao novo ano, sejam de responsabilidade apenas da rede estadual ou da rede municipal, a partir de um acordo entre o governo do Estado e as respectivas prefeituras.
A justificativa para as determinações é que o TAG tem objetivo de “eliminação da concorrência entre as redes da educação básica municipal e estadual; a otimização e o reordenamento das redes da educação municipal e estadual; a definição de critérios mínimos exigidos para a escolha do gestor escolar; e a criação de uma câmara regional de compensação para disponibilização de servidores entre as redes de educação básica”.
Após a aprovação em Plenário, a Corte deu ênfase a alguns dados de seus levantamentos, que justificaram a elaboração do TAG: “236 escolas são multisseriadas; 41 escolas não possuem sanitários internos; 38% das escolas não estão ligadas à rede pública de esgoto; apenas 16% das escolas possuem AVCB – Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros; 66% das escolas não possuem Biblioteca – em 29 redes não têm biblioteca em nenhuma escola; concorrência da rede de ensino, afetando a oferta de vagas”. Afirmou ainda que, “diante desse cenário, o TCE-ES apresenta aos municípios e ao Estado o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG), a solução compartilhada que busca equidade educacional e padrão mínimo de qualidade do ensino”.
Os educadores do Comeces, mais uma vez, repudiam a lógica da Corte, que, em nenhum momento deslocou seus conselheiros e técnicos para dialogar com as comunidades e educadores, limitando-se a uma série de reuniões com gestores municipais e estaduais – muitos deles coagidos a aceitarem o acordo – em explanação com base em dados econômicos, sem qualquer respaldo pedagógico, extrapolando a função do Tribunal de Contas, o que, conforme apontou a União dos Conselheiros Municipais de Educação (Uncme-ES), configura uma atuação ilegal por parte da Corte.
Sobre dois pontos específicos – a aludida concorrência entre as redes municipais e estadual e o desmerecimento das escolas multisseriadas -, a integrante da coordenação colegiada do Comeces, Maria Geovana Mellin Ferreira, expõe novamente o erro dos conselheiros.
“A concorrência está estabelecida na Constituição, ela não é problema, é solução, porque educação pública não é mercado. No mercado, concorrência e cooperação são opostos, mas no âmbito jurídico e na Educação, não!”, pontua.
Sobre as multisseriadas, que são as pequenas escolas do campo onde uma mesma turma tem alunos de anos diferentes estudando juntos, Geovana também expõe a incapacidade da Corte de Contas de compreender essa realidade.
“No relatório de 2019, o Tribunal destacava que a pequena distância entre as escolas, menos de três quilômetros, indicava que havia mau uso do recurso público, porém essas medições foram feitas com base em traçados de régua sobre mapas, não correspondem à realidade!”, reforça.
O levantamento também afirma, prossegue, que “‘elas não participam da Prova Brasil, do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), nem de qualquer outro tipo de avaliação de qualidade de ensino’. Acredito que esse é outro ponto importante para o Tribunal, mas que não justificativa impor o fechamento delas. Elas precisam ser fortalecidas e não vulnerabilizadas ainda mais”.
“Essas escolas existem porque tem sido negado para o restante da população as outras etapas da educação básica. Os moradores são transportadas para fora de suas comunidades para conseguirem dar continuidade ao ensino fundamental, muitas vezes em escolas dentro da cidade. Isso acontece com crianças, adolescente e adultos! A gente sabe do altíssimo índice de analfabetismo no campo, mas as famílias que querem estudar na modalidade EJA [Educação de Jovens e Adultos] não encontram matrículas no campo. E agora, com esse ensino se tornando cada vez mais virtual e menos presencial, fica ainda mais difícil. As pessoas estão desassistidas no campo. As escolas multisseriadas poderiam inclusive receber a EJA e receber os pais e mães dos estudantes, mas é negado a todos essa oferta”.
Essa realidade ocorre com frequência, lamenta Geovana, a despeito do TAG afirmar que “está vedada a nucleação de unidades escolares do campo com unidades escolares da cidade para os fins deste Ajustamento de Gestão”.
Exemplos foram denunciados ao Século Diário por comunidades escolares de Iconha e de Baixo Guandu.
No município do sul do Estado, duas escolas foram ameaçadas de fechamento no ano passado pela gestão do prefeito Gedson Paulino (Republicanos), mas apenas a de Campinho foi mantida aberta para o ano letivo de 2023. A de Pedra Lisa Alta foi fechada e os alunos transferidos para Bom Destino, bairro já no perímetro urbano, conta a vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, Samara Cremonini.
“A comunidade está muito triste com o fechamento da sua escola, ver as crianças terem que sair para estudar, o prédio da escola abandonado. A prefeitura disse que foi um pedido de famílias de outras comunidades, que queriam que os filhos na escola de Bom Destino e não mais na de Pedra Lisa Alta, mas a gente não sabe até que ponto essas famílias foram manipuladas para dizerem isso”, pondera.
No município da região noroeste, o prefeito Lastênio Cardoso (Podemos) determinou o fechamento violento de nove escolas do campo, com ações de quebra de fechadura e retirada de móveis em meio à ocupação das famílias, pedindo pela manutenção das escolas.
As crianças da comunidade de Queixada foram transferidas para Mascarenhas, na zona urbana, e as demais para outras comunidades rurais. Em todas elas, há problemas constantes com o transporte escolar, que falha sempre que chove um pouco mais, deixando os estudantes sem aulas por vários dias.
“Até hoje tem pessoas que me perguntam se vai continuar assim mesmo, se as escolas não vão voltar. Ainda ficam com esperança de que a escolinha deles volte a funcionar”, relata a vereadora Sueli Teodoro (PCdoB), que levou o caso para o Ministério Público Estadual (MPES), mas, apesar de uma notificação da promotoria local, exigindo reabertura das escolas, a situação não se modificou.
Em Iconha, o MPES também foi acionado, mas não reverteu a decisão autoritária da gestão municipal.
“Eles, os conselheiros, aprovam uma coisa que eles falam ser para o melhor das crianças, eles vão vir aqui fiscalizar a realidade?”, questiona a vereadora.