Terra do herói botocudo Caboclo Bernardo, Linhares pode ter sua primeira aldeia indígena reconhecida pela Funai
O processo de ressurgimento de povos e comunidades indígenas considerados extintos, iniciado em meados da década de 1970 no Brasil, se mostra em Linhares, norte do Espírito Santo, por meio da comunidade autorreconhecida como botocuda em Areal, próximo a Regência, na foz do Rio Doce.
Cortada por gasodutos construídos pela Petrobras há 40 anos, a pequena vila, com aproximadamente 80 famílias, vive uma efervescência cultural nos últimos anos, puxada por uma geração que sente orgulho de reconhecer sua ascendência originária e, aos poucos, começa a retornar para casa, após um longo hiato forçado pela violência com que os grandes empreendimentos dominaram a região, com a condescendência de todas as esferas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
“Estamos a caminho de uma grande conquista”, afirma o vice-presidente da Aldeia Indígena de Areal, Carlos Gil Monteiro da Silva. Ele mesmo, regresso recentemente, após décadas evadido da comunidade, levado pela mãe, traumatizada pela explosão de uma torre da Petrobras há 40 anos. “A minha mãe não consegue voltar, ela pensa que se vier para cá vai viver aquela explosão de novo”, lamenta, mas sem perder a esperança de criar as condições necessárias para dar a segurança e o acolhimento que a genitora precisa.
O processo de reconhecimento da aldeia botocuda de Areal caminha na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), por meio de um Grupo de Trabalho. Os primeiros estudos feitos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) serviram de base para o processo.
“Encontraram objetos arqueológicos que comprovam que nossos antepassados viveram aqui. Foi o marido da Ziza que encontrou”, destaca Carlos Gil, citando uma das anciãs da comunidade. “D. Ilda, D. Gleuza, D. Darci, D. Marcelina, D. Ivone”, elenca outras guardiãs da memória.
“Hoje já somos vistos como povo indígena botocudo. Não está sendo fácil. É uma luta de 150 anos, que nossos antepassados não tiveram forças para lutar, mas essa geração nova começou a se enxergar como aldeia, junto com a aldeia Tupinikim de Comboios, em Aracruz. Estamos a caminho da vitória”, reforça.
Um antepassado ilustre é o herói Caboclo Bernardo, pescador da vila de Regência Augusta, condecorado pela Princesa Isabel com uma medalha de honra por ter salvado a vida de 128 náufragos do navio Imperial, da Marinha do Brasil, de 1887. “Foi uma grande referência”, afirma o vice-presidente.
Naquela época, a alcunha de “caboclo” era uma forma de apagar a presença indígena no país, postura que ainda perdura, mas começou a enfrentar resistência cada vez maior, principalmente após a Constituição Federal de 1988, que reconheceu os direitos fundamentais dos povos originários, incluindo a autoidentificação e o território ancestral.
“A gente já sabia que era indígena. Temos um livro com uma árvore genealógica imensa mostrando isso. Mas o índio foi se afastando da sua identidade por causa dos homens brancos. Agora pegamos a dor dos nossos familiares e nos unimos para sermos uma aldeia reconhecida. Queremos trazer a cultura de volta para os nossos filhos, futuramente. Não sei se a conquista vai ser para nós, mas espero que seja para os nossos filhos”.
Apesar do apagamento forçado, alguns elementos tradicionais permanecem ativos, conta Carlos Gil. Como o quitungo, que é o local para fazer a farinha, ingrediente básico da alimentação. Também o uso da tinta do urucum e do jenipapo, o plantio da mandioca e do milho, a criação de animais como porcos e galinhas. O antigo quitungo de Areal, no entanto, a 5 km da vila, foi desativado e precisa ser reconstruído. A comunidade também quer reativar a língua original, as danças e músicas tradicionais. “Somos um povo esquecido, mas que precisa ser visto”.
O apelo é para a toda a sociedade indígena e não-indígena e também para o poder público. Areal não tem serviço de saúde, nem ambulância para levar os moradores para o posto de Regência, e a escola atende só aos primeiros anos do ensino fundamental. A Prefeitura de Linhares recebe royalties e nunca coloca nada aqui dentro. Só tem uma guarita e um Wi-fi e seis toneis de lixo. O serviço público aqui é muito ruim”.
Fundamental também o reconhecimento por parte das empresas, especialmente a Petrobras, que tantos impactos provoca na vida da comunidade. “O gás e o óleo são rasgados no meio da comunidade. A gente convive, dorme e acorda com isso, passa pela estrada com isso, tem que conviver. A Petrobras nunca olhou para o povo aqui, nunca teve um diálogo. Quando pedimos uma compensação para a comunidade, para cada família, nunca mais fez reunião nenhuma mais”, denuncia.
Há um ano, a Imetame chegou na região para explorar petróleo e, logo na entrada, provocou um vazamento de óleo. “Chamamos para uma reunião e até hoje nada”, conta. “Gostaríamos que todas as empresas à nossa volta visualizassem a gente como povo tradicional indígena”.
Um novo passo no processo de reconhecimento da Funai é esperado para o mês de abril, quando técnicos da autarquia farão o mapeamento da comunidade, cadastrando todos os moradores. “Pessoas que moravam fora estão voltando, porque estão vendo a luta caminhando. Isso é uma coisa muito grande, porque o povo tradicional tem que se unir”, comemora.
O sentimento é de alegria. “Eu sou um desses que voltei para lutar. É uma sensação de muita liberdade, poder fazer o que está no sangue, de lutar pelo povo. A gente se sente vitorioso já”.