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Vento sul

O ônibus encosta na calçada, suave como a queda de um piano do andar mais alto do Burj Dubai

PMV

Vejo o vento chegar de mansinho numa tarde sem sol – céu carregado de nuvens cinzentas escondendo o azul infinito. Essa cor existe ou foi inventada? O ar e o mar não têm cor, mas nós os vemos como nos antigos filmes em technicolor. O vento incolor veio zangado, tecendo sobre as águas da baía um rendado uniforme, feito o imenso dorso de um peixe pré-histórico. Poluída, as águas da baía já não refletem as cores do arco-íris.

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O vento indiscreto faz tremer as bandeirinhas coloridas dos navios. Tremem também os navios, prevendo ondas agitadas. Ato contínuo e inevitável, tremem os futuros passageiros parados perto da amurada, aguardando o próximo ônibus ou os que vierem depois. O jornaleiro da banca da esquina corre a proteger suas revistas – agitadas pelo vento, de repente elas mostram o colorido das páginas internas, escondidas de olhares indiscretos – Só vê quem paga, Amigo.

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O ônibus encosta na calçada, suave como a queda de um piano do andar mais alto do Burj Dubai. O motorista abotoa o casaco surrado enquanto os passageiros correm para se abrigar no bojo do monstro. Que parte sem dizer adeus. Os edifícios da esplanada permaneceram eretos, indiferentes às investidas do vento. Na portaria do maior deles, o motorista do Uber aguarda impaciente um passageiro que demora a descer os dez andares – fobia de elevador.

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Os trabalhadores informais das barracas enfileiradas ao longo da calçada sorriem esperançosos: o frio inesperado pode aumentar a venda de agasalhos e guarda-chuvas. Se é que chove. No lado oposto dessa gangorra econômica, o garçom do barzinho de cadeiras de alumínio coloridas olha o céu, preocupado – Se o tempo esfriar, cai a venda de cerveja e sorvetes; se chove não tem freguês, melhor fechar as portas e esperar o dia seguinte. Pelo menos economiza na conta de luz.

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Indiferente às imprevisíveis interações humanas, o vento toma ímpeto e chega ao imponente edifício Glória, outrora um cinema glorioso. Ali assisti alguns filmes que hoje ganham remakes, mas não conseguem superar as obras-primas da era de ouro de Hollywood: Sabrina, Nasce uma estrela…e outros tantos. São velhos amigos, esses dois: o vento já rondava por ali quando havia no local o Cine Éden, desbancado pelo Cine Teatro Glória, inaugurado em 1932 com o filme O Tenente Sedutor.

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Grande sucesso na época, o filme é uma comédia romântica musical com Claudette Colbert e Maurice Chevalier, ambos franceses, e dirigido por Ernst Lubitsch, alemão, que se inspirou na opereta composta em 1907 por Strauss, outro alemão. A tradução do título seria Serenata de Amor, e talvez tenha inspirado um certo chocolate que muito apreciamos. O vento viu tudo isso mas não me contou, segue em frente, agitando as árvores tranquilas da Costa Pereira, que já estavam ali vendo o bonde passar muito antes de inventarem o cinema.

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O vento correu despreocupadamente ao longo da Jerônimo Monteiro, como um monarca autoritário a examinar seus domínios. Enfatuado, chegou às imponentes escadarias do Palácio Real, onde já não mora a realeza e reis já não reinam. Foi informar a quem lá estivesse que trazia a quinta estação do ano, indiferente aos calendários oficiais. Podia durar três meses, como suas primas, ou terminar a qualquer momento – e outra vez seria verão na capital capixaba, comandada pelos caprichos do vento sul.

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