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Vice-cacique Maynõ Guarani: ‘O que nos fortalece são nossos cantos sagrados’

Liderança na maior aldeia Guarani do Estado, ele luta pelo direito do seu povo viver conforme sua cultura

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O que era para ser uma aldeia mais reservada, apenas para as famílias desejosas de viver mais próximas da natureza e afastadas do burburinho que adentra as Terras Indígenas (TIs) de Santa Cruz, em Aracruz, norte capixaba, tornou-se a maior aldeia Guarani do Espírito Santo. A Tekoá Ka’agwy Porã (Aldeia Nova Esperança) tem hoje mais de 200 moradores e a liderança de um jovem determinado a trabalhar pelo direito do seu povo de viver conforme sua cultura.

Filho do cacique Werá Djekupé, Maynõ Guarani é casado e pai de duas crianças. Graduando-se no Programa de Licenciatura Intercultural Indígena (Prolind) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ele caminha com desenvoltura entre o universo indígena e branco, consciente da responsabilidade de dar continuidade à luta empenhada por seus antepassados.

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“A gente está num território totalmente assolado pelo plantio de eucalipto. Precisamos retomar a conversa com a empresa [Suzano, ex-Fibria, ex-Aracruz Celulose], porque o território foi entregue [em 2007, após intenso movimento de autodemarcação de 11 mil hectares sob domínio da empresa] naquela situação, tendo de destocar [retirar os tocos de eucalipto cortados], empobrecido. Essas coisas não podem ficar impunes”, posiciona.

O início do deserto verde, afirma, ainda está vivo na memória dos anciãos e reverberando sofrimento também entre as novas gerações. “Ela [Aracruz Celulose] chegou com correntões, derrubando toda a floresta. Os mais velhos viram isso. Eu gravei esses depoimentos segurando o choro, vendo a tristeza dos mais velhos. Não tem como dizer que esses acontecimentos do passado não afetam a gente na atualidade. Fazendo meu TCC [Trabalho de Conclusão do Curso] eu lia essas coisas nos documentos e me dava uma dor enorme no peito, relacionando com o que eu ouvia do meu pai, da minha avó. Não adianta dizer que não afeta, que é ‘mimimi’, porque não é”.

A situação dos Guarani e Tupinikim em Aracruz, sublinha, é um microcosmo do que ocorre em âmbito planetário. “Os países mais pobres e mais violentos, com grandes índices de doenças, não são os europeus, somos nós, que ainda somos o celeiro deles. O ouro ianomâmi ainda vai para a Europa, as madeiras. A Sonia [Guajajara, ministra dos Povos Indígenas] fala bem isso: os minérios usados em iPhone são tirados das terras indígenas. Essa sociedade que a gente está vivendo é ridícula, insustentável, não vale para nós. A gente está chegando num ponto de não reversão, precisa pensar em políticas melhores”.

O que há de mais promissor no cenário brasileiro atualmente, observa, é a chegada de lideranças indígenas nos espaços de poder federais, após a eleição do presidente Lula (PT), mas isso não significa que está tudo resolvido, apenas que a luta encontra eco no alto e médio escalão e que avanços já começaram a acontecer. “A gente esteve com Douglas Krenak [novo coordenador regional da Funai ES/MG]. É uma conversa que começa a ficar melhor, de parente para parente a gente se entende melhor, mas está tudo no começo. Eu que estou começando agora quero contribuir para sanar essas questões”.

Questões que, em âmbito local, tocam em necessidade básicas da Aldeia Nova Esperança, como água, energia, saúde, educação. Fundada em 2015, sofre logo nos seus primeiros meses de existência os impactos do crime da Samarco/Vale-BHP, mas de forma inversa às áreas atingidas pelos rejeitos de mineração. “Com a contaminação do rio Piraquê-açu e o lençol freático na Terra Indígena, os Guarani, que têm uma ligação forte com a natureza, muitos decidiram vir para a Nova Esperança”, conta Maynõ. Por estar mais distante do rio, a nova aldeia se manteve mais a salvo, atraindo mais famílias do que se esperava inicialmente.

Divulgação

A grande população, por sua vez, trouxe desafios extras na infraestrutura. A comunidade está organizada em núcleos familiares distantes entre si, ocupando vasta extensão. A energia elétrica, no entanto, não chega a todos os núcleos e a água encanada a nenhum. “Quem consegue energia, cava um poço, pega água da nascente e têm água em casa, mas de forma bem precária”.

Nas negociações com a Fundação Renova, instituída devido ao crime da Samarco/Vale-BHO, uma demanda é para que, como forma de compensação ao território, sejam abertos poços artesianos e construída uma rede de distribuição da água potável. “Mapearam o solo, mediram, mas não fizeram nem o poço nem o encanamento. São poços que iriam abastecer também outras aldeias Tupinikim e Guarani. Mas continuamos sem qualquer resposta”.

Em caráter emergencial, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) passou a abastecer a comunidade com carro-pipa. Há mais de sete anos e de forma precária. “Feriado o caminhão não vem. Sábado e domingo, o caminhão não vem. Caminhão quebrou, choveu, não vem. Às vezes é uma semana as famílias tomando água de chuva ou pegando água em garrafa pet. Eu já passei quatro finais de semana seguidos sem ter água na caixa. O reservatório, a Estação de Tratamento de Água [ETA] que abastece a população de Aracruz, está colado na aldeia, no Rio Sauê, mas a gente aqui não tem água encanada”, contrapõe o vice-cacique.

Outra reivindicação antiga dos Guarani é a educação. Depois de muita luta, os Tupinikim conseguiram o funcionamento da sua escola de ensino médio, mas os Guarani ainda estão desassistidos. “Só tem duas pessoas formadas aqui na minha comunidade. Os jovens às vezes nem terminam o ensino médio, porque têm dificuldade de ir para Coqueiral. Temos o ensino fundamental Guarani, mas também precisamos do ensino médio”, reivindica.

Já a saúde indígena se resume a uma salinha reservada para receber a equipe de saúde quando faz visita à comunidade. “Precisamos de pontos de apoio para a saúde estruturados. Tem famílias no interior do território que têm que se deslocar cinco, até 14 km, para chegar a um posto de saúde”.

A espiritualidade também demanda uma estrutura sobre a qual a comunidade atua para sanar. Maynõ conta que cada núcleo familiar da aldeia Nova Esperança faz sua própria casa de reza, mas não há palha natural suficiente no território para todas as construções. Sem o indaiá nativo, está sendo necessário trazer piaçava da Bahia. “A gente está com nossa autonomia rompida. O que temos tentado fazer é trazer essa autonomia de volta, para viver da forma que a gente quer viver. Hoje a gente precisa ir lá e cá”, pontua.

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Outra planta fundamental é o milho crioulo, utilizado no batismo das crianças. “A Tatanti [xamã Tatanti Rua Rette, que guiou o povo em peregrinação até a Terra Sem Males de Aracruz] trouxe as sementes sagradas e a palavra. Mas no contexto da luta, acabou perdendo as sementes. A minha comunidade vem tentando fazer o cultivo do milho para fazer a cerimônia do batismo de volta para cá. A gente tem fé que vai conseguir sim. Mas precisa que a água chegue. Percebe como além da questão material, a água também envolve uma questão macro, humana e espiritual? Está na hora de deixarem o nosso povo viver em paz”, roga.

Um grande plantio já foi empreendido pela aldeia. Mais de 230 mil mudas frutíferas e nativas mudaram radicalmente o cenário, que era de solos nus e degradados, após décadas de monocultivo de eucalipto. O trabalho continua, em parceria com o Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan) e com a empresa Imetame.

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A Imetame, pontua Maynõ, é uma das quase 40 empresas instaladas no entorno ou dentro das TIs indígenas, e que precisam se regularizar do ponto de vista do licenciamento ambiental, em que condicionantes fundamentais não foram cumpridas, porém, por falta de fiscalização, não impediram que as atividades econômicas se iniciassem, intensificando os impactos sobre as comunidades indígenas e outras da região. “Aqui nesse território já teve 39 aldeias, hoje são doze, treze. E são 38 empreendimentos e agora chegou a Sudene [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste]. Nenhum desses empreendimentos veio aqui fazer a consulta prévia da Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”.

Os grandes e históricos desafios não amedrontam o jovem líder Guarani. A força vem das raízes culturais e da ancestralidade. “O que fortalece e me remete ao nosso povo e à nossa cultura são os nossos cantos sagrados. É a partir daí que a gente traz a força dos nossos ancestrais, que resistiram para que a gente estivesse aqui. Se você vier perguntar para as famílias aqui se elas querem viver como os nossos antepassados, tenho certeza que dirão que sim”.

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