Daniel Cara, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, alerta sobre equívocos do TAG do Tribunal de Contas
A reestruturação da educação em curso no Espírito Santo e Ceará, considerados estados de referência nacional, já tem sido desconstruída nos Estados Unidos, seu país de origem, e na Europa, onde cada vez mais educadores e gestores comprovam seu fracasso no alcance dos resultados esperados.
A avaliação é do educador Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Ele esteve na Capital capixaba nessa quinta e sexta-feira (25 e 26), participando da audiência pública em referência aos seis meses dos atentados a escolas em Aracruz, promovido pela deputada estadual Camila Valadão (Psol), e de um debate sobre a reforma do ensino médio realizado pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), quando concedeu entrevista exclusiva a Século Diário.
“O que se faz aqui no Espírito Santo, Ceará, Pernambuco e outros estados, é um ‘museu de grandes novidades’. Vitor de Angelo e demais gestores estaduais sequer têm consciência de que estão reproduzindo o projeto de reforma econômica da educação que está sendo revertido nos Estados Unidos e na Europa”, alerta Daniel Cara.
No hemisfério norte, explica, essa reestruturação, sob uma “perspectiva neoliberal da educação”, se iniciou na década de 1980, tendo como marco um relatório produzido pelo governo do então presidente republicano Ronald Reagan, liderança do neoconservacionismo no país, chamado Uma Nação em Risco – o Imperativo da Reforma Educacional (A Nation at Risk – Anar, no original em inglês).
Com caráter essencialmente neoliberal, a reforma empreendida por Reagan trazia os elementos que hoje estruturam o conjunto de medidas defendidas no âmbito do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), do qual o capixaba Vitor de Angelo é presidente. “É exatamente o que está sendo feito no Espírito Santo: controle do trabalho docente, avaliação em larga escala, remuneração por resultados e reorganização curricular nos moldes da reforma do ensino médio”, contextualiza.
O relatório Anar, ressalta, mobiliou um grande debate que se prolongou nos anos 1990, tendo o teórico Eric Hanushek como expoente, quando as diretrizes da reforma de Reagan foram sendo implementadas com intensidade até o início dos anos 2000, também na Europa. Nesse meio tempo, as ideias neoliberais da Educação começavam a aportar no Brasil, pelas mãos de políticos como Paulo Renato Souza (PSDB-RS), ministro da Educação de Fernando Henrique Cardoso.
A desconstrução dessa reforma neoliberal da educação começou em 2011, também nos Estados Unidos, mais precisamente em Nova Iorque, com o então prefeito Michael Bloomberg. “Ele decide primeiro acabar com a remuneração por mérito, porque viu que não dava resultado”, aponta Daniel Cara.
O efeito Bloomberg logo se fez sentir também na Europa, prossegue, ressaltando que, nesses países, os efeitos negativos da reforma neoliberal não foram tão devastadores quanto estão sendo no Brasil, devido aos avanços históricos que eles já haviam conquistados em relação ao provimento da educação. “As condições de ensino nesses países são mais favoráveis. Número de alunos, bons salários para professores…aqui os professores são muito desvalorizados e as escolas estão em geral com estrutura insuficiente”, compara, citando a professora da Universidade Federal do Estado (Ufes) Eliza Bartolozzi como pensadora contemporânea fundamental nesse debate.
Nos trópicos brasileiros, portanto, o “museu de grandes novidades” propalado a partir do Espírito Santo precisa ser urgentemente desconstruído. “Não estão fazendo algo inovador. Estão atrasados em relação ao que acontece no restante do mundo”. Uma referência nessa retomada capitaneada por Bloomberg é o filósofo John Dewey, falecido na década de 1950 em Nova Iorque, mas com muitos discípulos ao redor do mundo, inclusive no Brasil. “Foi grande mestre do Anísio Teixeira, estudou com ele na Universidade de Columbia”, cita.
TAG
Daniel Cara afirma ainda que o Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) imposto pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) ao governo do Estado e aos municípios é uma das iniciativas emblemáticas da fracassada cruzada neoliberal da Educação capixaba e brasileira.
“Nem o Tribunal de Contas nem o Ministério Público podem colocar em dúvida o direito à educação, mas é o que eles fazem ao proporem o Termo de Ajuste. O TAG é uma tentativa de normalizar esse tipo de lógica neoliberal, de autorizar essa lógica”. E isso, sublinha, num Estado em que esse direito “está sendo negligenciado, por uma gestão muito dedicada a uma perspectiva de controle do trabalho dos docentes, mas pouco dedicada à defesa do direito à educação”.
A Campanha pela Defesa do Direito à Educação encampou a luta contra o TAG no início do mês, por meio de uma mesa-redonda realizada em conjunto com o Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Ao final do evento, os educadores presentes formaram uma comissão com objetivo de estudar quais ferramentas mais apropriadas para impedir a implementação do TAG, tendo sido cogitada inclusive o ajuizamento da questão.
“O Comeces [Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo] agiu muito bem ao iniciar o enfrentamento ao TAG. A Campanha também estuda a melhor maneira de fazer esse enfrentamento, junto com o Comeces e outras organizações. Não pode acontecer um termo de ajuste de gestão ser refratário ao direito à educação. Não está se ajustando à gestão, está desorganizando. A gestão pública tem que ser orientada pelo direito à educação”, reforça.
Educadores na gestão
O caminho que o Brasil precisa seguir, afirma, é fazer com que a gestão da educação seja entregue para educadores. “A gestão da saúde foi entregue para sanitaristas durante a pandemia, foi orientada pelas ciências da saúde. As políticas de educação também têm que ser orientadas pelas ciências da educação e feita por educadores e educadoras. Hoje quem faz a gestão não parte da ciência da educação, tampouco conhece a realidade das escolas públicas”.
Nesse sentido, orienta, “o Tribunal de Contas precisa concretamente abrir uma mesa de negociação com os movimentos e a Campanha para entender as críticas ao Termo de Ajuste de Gestão”.
Daniel Cara afirma ainda que a Campanha está disposta a debater com o Tribunal de Contas, mas não tem encontrado essa abertura. “Eu faço questão de, havendo essa abertura, trazer tanto o Comitê Capixaba quanto a coordenação geral da Campanha para dialogar com o Estado do Espirito Santo. Até pela influência que tem no país”.