Nas manhãs de sábado, era comum nos depararmos com velas queimadas e pimentas bravas
Na extensa lista de auxiliares que passaram por minha vida nos meus distantes anos de dona de casa inexperiente, com filhos pequenos, a mais citada e lembrada é Dilina. Farta de carnes, como se dizia naqueles tempos, parecia aquelas baianas vendendo quitutes nas escadarias das igrejas de Salvador. Ainda existem, ou hoje fazem regime e só vendem quitutes veganos?
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Dilina balançava as volumosas saias floridas pela cozinha e de suas mãos fartas brotavam as mais deliciosas iguarias, razão única de ignorarmos suas esquisitices. Pois a moça era dada a feitiços e “serviços”, movida pelo ciúme doentio do noivo Dunca, que pretende se casar no Dia de São Nunca. Qualquer das auxiliares do edifício que se aproximasse do malandro entrava na lista proibida da Dilina – e não eram poucas. O sujeito não deixava escapar nenhuma.
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Moramos em um país tropical, sem preconceitos de cor e de credo, certo? Nada mais justo e louvável que Dilina se dedicasse ao ritual das mães e pais de santos, a seita (para uns) ou religião (para outros) que seus antepassados trouxeram da velha África. Vieram eles en-masse invadir nossas terras, por livre e espontâneo arbítrio, ou foram trazidos à força? Pois que pelo menos trouxessem na parca bagagem as deidades que seus ancestrais adaptaram à religião dos europeus. Valei-nos Santa Barbara!
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Dilina, porém, exagerava em suas virtudes de mandingueira, e as complicações perturbavam a paz do antes pacato Edifício Belatrix, ali ao lado da imponente Catedral Metropolitana, Cidade Alta. Nas manhãs de sábado, era comum nos depararmos com umas velas queimadas e umas pimentinhas bravas nas entradas de serviço dos residentes. E como guerra é guerra, as outras devotas de Ogun – ou do Dunca – revidavam a ofensa deixando também seus trabalhos na minha porta. As patroas vinham reclamar, exigindo que eu tomasse as devidas providências.
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A tal ponto chegou a troca de despachos e desaforos nos corredores que abri mão das virtudes culinárias da Dilina e a despachei de vez: que fosse cantar em outro terreiro. Passei um longo tempo sem conseguir uma auxiliar para o serviço doméstico. Todas que contratava não ficavam nem uma semana – logo pediam a conta com as desculpas mais esfarrapadas. Demorei a perceber a mão poderosa da Dilina agindo nas sombras – a todas ela prometia um tombo infalível se continuassem comigo.
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O paraíso acima do nosso vasto céu azul abriga muitos santos, todos com um dia especial para serem glorificados aqui na terra. Tem até um cantinho meio escondidinho para um santo que ficou sem dia: e a gente sempre espera alguma coisa que só vai acontecer no Dia de São Nunca – o aumento de salário; o casamento ou o noivado; quando a vida vai melhorar ou quando vou passar no concurso. É a volta de quem partiu e nem disse adeus: o dia de São Nunca não chega nunca.
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O casamento da Dilina com o Dunca também não sai, mas enquanto espera, ela vai limpando os caminhos com suas velas queimadas e as pimentas bravas. Cerquei a malvada em uma esquina e avisei de cara feia: Não se mete com minhas domésticas, ou faço uma amarração pra você só casar com o Dunca no dia de São Nunca. Pois não é que funcionou?