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‘Grupos de jovens estão se levantando, acordando as comunidades’

Discussão do Marco Temporal no Congresso e STF movimenta indígenas do ES e Brasil sobre direitos fundamentais

Fábio Rodrigue-Pozzebom/Agência Brasil

Um efeito colateral positivo da discussão política e jurídica a respeito da tese do Marco Temporal tem sido uma mobilização intensa das comunidades a partir, principalmente, de seus jovens, entre os mais diversos povos indígenas do Espírito Santo e outras partes do Brasil.

A ponderação chega por meio de Rodrigo Guarani, vice-cacique da aldeia Piraquê-açu, em Aracruz, norte do Estado, ao avaliar a primeira fase da luta contra o Marco Temporal, concluída nessa quarta-feira (7), com a nova suspensão do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). “Grupos de jovens Guarani estão se levantando, acordando as comunidades indígenas”, ressalta.

De fato, o protagonismo de juventude indígena, que tem marcado as mais recentes edições do Acampamento Terra Livre (ATL) – considerado a mais robusta manifestação indígena de âmbito nacional do país – se mantém nas manifestações de repúdio ao Marco Temporal que se multiplicam desde o final de maio.

Nas Terras Indígenas Guarani e Tupinikim em Aracruz e nas delegações capixabas a Brasília, a juventude se destaca, inspirando os mais velhos a também se dedicarem mais à luta. “Os caciques decidiram assumir sua liderança na luta contra o Marco Temporal, apoiando a juventude que já está mobilizada”, pontuou o coordenador-geral da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Tupinikim, liderança em Caieiras Velhas.

O próprio vice-cacique de Piraquê-açu é uma liderança jovem, filho do cacique Pedro Guarani, e traz um olhar aguçado sobre a necessidade dos indígenas lutarem com mais vigor por seus direitos fundamentais, originários e constitucionais, e mostrarem as contradições da sociedade não-indígena, que ainda usa da força econômica, política e jurídica para usurpar territórios tradicionais.

“Vários povos estão passando por essa dificuldade, não podemos ter nossos direitos dentro do nosso próprio Brasil. A gente desconhece essa lei deles [Marco Temporal], dos juruás [pessoas não-indígenas]. Não respeitamos, porque é uma lei deles, que eles mesmos criaram só para eles, não para todo mundo”.

A truculência, pontua, ficou evidenciada durante o último protesto, realizado nessa quarta-feira (7) nas rodovias e estrada de ferro que cortam o território Guarani e Tupinikim e seus arredores. “O Judiciário quer nos proibir de fazer o nosso protesto dentro da nossa terra”, indigna-se.

“A gente estava só mostrando em cartaz os nossos direitos, não estava depredando nada, não estava fazendo bagunça. Era sistema pare e siga. Vinte minutos, depois liberava os carros. Mas polícia, ambulância, pessoa com consulta média marcada, essas coisas de urgência, a gente deixou tudo passar. Foi pacífico, um movimento dos jovens, dentro do nosso território”, expõe.

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Quem é o invasor?

A reação da força jurídica e econômica, no entanto, desconsiderou por completo esse contexto de luta por direitos e visibilidade. Na decisão do juiz Fábio Luiz Massariol, da 1ª Vara Cível, Família e de Órfãos e Sucessões de Comarca de Aracruz, os Guarani e Tupinikim em manifestação são chamados de “invasores não identificados”.

O despacho foi assinado às 18h28 de terça-feira (6), véspera do anunciado protesto indígena, atendendo a uma Ação de Tutela Antecipada, requerida em caráter antecedente pela Federação das Indústrias do Estado (Findes), sob responsabilidade do advogado Marcelo Sena Santos (Processo nº 5002984-49.2023.8.08.0006), que também defendeu a Suzano Papel e Celulose no recente episódio de ocupação por parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em uma área de monocultivo de eucalipto da empresa em Mucuri, extremo sul da Bahia.

“Os manifestantes estão novamente ameaçando bloquear as rodovias estaduais que cortam este município, atos que, segundo informações veiculadas nos meios de comunicação de todo o país, podem durar toda a semana. Conforme narrado, as Rodovias ES-010 e ES-445 são as principais ligações do polo industrial da Barra do Riacho a BR-101 e a Vitória, de modo que uma paralisação destes trechos impacta severamente as atividades das empresas localizadas na região, como a Petrobrás, Jurong, Imetame, Suzano, Estel, JSL, dentre outras. Caso a ameaça se cumpra, toda frota logística de abastecimento dessas empresas será paralisada, com impactos imensuráveis não só para as indústrias mencionadas, mas para toda a cadeira (sic) produtiva e a população da região. Por tais motivos, a autora pleiteia a tutela inibitória para que os requeridos se abstenham de bloquear e obstruir as Rodovias ES-010, ES-257, ES-445 e ES-456 em eventuais manifestações que venham a ocorrer acerca do tema”, argumenta o advogado.

Na sentença, Fábio Massariol diz reconhecer a “iminência do risco da privação do direito de ir e vir dos trabalhadores da indústria, bem como a regular prestação dos serviços industriais, haja vista restar caracterizado o indício de novas ameaças de protesto e bloqueios de vias e mobilizações em todo o país, a ocorrerem nesse município na data de 7/6/2023, ante a retomada do julgamento do assunto nesta quarta-feira, no bojo do Recurso Extraordinário n.º 1.017.365, de repercussão geral, a fim de pressionar os ministros que votarão”.

A decisão é de acatar o pedido da Findes e “determinar que os requeridos, manifestantes e demais pessoas ligadas ao movimento se abstenham de obstruir as Rodovias ES-010, ES-257, ES-445 e ES-456, localizadas em Aracruz/ES, bem como de promover novas paralisações ou bloqueios nas vias, autorizando a livre circulação dos veículos, prepostos e prestadores de serviço das indústrias nas vias particulares e públicas”.

Em caso de descumprimento, o magistrado estabelece a imediata desobstrução das vias, “autorizando a livre circulação dos veículos, prepostos e prestadores de serviço das indústrias nas vias particulares e públicas” e a multa no valor de R$ 2 mil “para cada pessoa, por dia, que descumprir quaisquer das determinações da presente ordem judicial”, além de autorizar “o uso de força policial, caso necessário”, por meio de intimação do Comando da Polícia Militar do 5º BPM e solicitar o contato com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

As empresas listadas pelo advogado se inserem num grupo de 40 empreendimentos instaladas no território indígena, que somam um grande número de irregularidades no cumprimento das condicionantes de licenciamentos ambientais e estão sendo mapeadas em projeto.

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A pioneira na “invasão” industrial do território tradicional foi a então Aracruz Celulose (ex-Fibria, atual Suzano), nos anos 1960, que até hoje não entregou condicionantes relativas a obras diversas, como o Canal Caboclo Bernardo, que desvia água do Rio Doce para sua fábrica, em Barra do Riacho.

O jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa recorreu da decisão do juiz, conta Rodrigo Guarani. “A advogada fala de várias coisas ilegais ali, chamar a gente de ‘invasor não identificado’, proibir a gente de se manifestar no território. Essas empresas estão nas nossas terras”, repudia o vice-cacique.

Assassinato de crianças

No STF, a retomada do julgamento do Marco Temporal, após quase dois anos suspensa, resultou no voto do ministro Alexandre de Moraes, que registrou sua posição contrário à tese. Em sua argumentação, ele destacou a menção ao livro Os índios Xoklegn – memória visual, publicado em 1997 pelo antropólogo Cido Coelho.

“Esses índios Xoklegn viviam em Santa Catarina até os anos 1930, até que os bugreiros exterminaram quase todos esses indígenas a mando de autoridades locais. Há relatos de que 234 indígenas foram covardemente assassinados, inclusive crianças foram jogadas para cima e espetadas com punhais. Os sobreviventes se evadiram do local, porque se tentassem voltar, os poucos que sobreviveram seriam mortos. Todos sabem qual era a área dos índios Xokleng e não puderam voltar porque os demais seriam mortos. (…) Ora, óbvio que em cinco de outubro de 1988 eles não estavam lá. (…) Será que é possível não reconhecer essa comunidade? Será que é possível ignorar totalmente essa comunidade indígena? Ignorar essa realidade sem estarmos ferindo o que a Constituição diz que é efetivamente a proteção dos direitos fundamentais das comunidades indígenas?”.

José Cruz/Agência Brasil

Alexandre de Moraes no entanto, defendeu que, apesar da inconstitucionalidade da tese do Marco Temporal, as terras já homologadas ou em processo de homologação só podem ter efetivada a titulação aos povos indígenas mediante indenização integral dos ocupantes, considerando que muitos podem tê-lo feito por desconhecimento da ancestralidade indígena no território.

Conforme registrou a Agência Brasil, “para o ministro, existem casos de pessoas que agiram de boa-fé e não tinham conhecimento sobre a existência de indígenas onde habitam”. Por isso, “quando reconhecido efetivamente que a terra tradicional é indígena, a indenização deve ser completa. A terra nua e todas benfeitorias. A culpa, omissão, o lapso foi do poder público”, afirmou.

‘Terrivelmente evangélico’

O placar está em 2 a 1 contra o Marco. Em 2021, antes da interrupção do julgamento, o ministro Edson Fachin votou contra a tese, e Nunes Marques se manifestou a favor.

O próximo a votar é André Mendonça, que pediu vistas do processo após o voto de Alexandre de Moraes, suspendendo novamente o julgamento. Pelas regras internas do STF, o caso deverá ser devolvido para julgamento em até 90 dias. Considerando o recesso do Judiciário em julho, há risco da retomada ocorrer somente em outubro, quando a presidente do Supremo, ministra Rosa Weber, já teria se aposentado compulsoriamente, quando completar 75 anos de idade, o que ocorrerá no dia dois daquele mês.

O “terrivelmente evangélico” ministro André Mendonça indicado pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL) em dezembro de 2021, disse, no entanto, que irá se esforçar para manifestar seu voto antes disso, atendendo ao pedido da presidente, que disse querer votar no caso.

‘Repercussão geral’

Objetivamente, o que está em julgamento é o “Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, que discute se a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) deve ser adotada como Marco Temporal para definição da ocupação tradicional da terra por indígenas”, afirma o STF.

O recurso se dá no âmbito de uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xoklegn e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que em 2001 reconheceu a legitimidade do território aos indígenas. Em 2019, o STF decidiu pela “repercussão geral” do caso, ou seja, o resultado final do julgamento deveria ser aplicado a todos os semelhantes a ele no país.

Fábio Rodrigue-Pozzebom/Agência Brasil

Se aprovada a tese, todas os territórios indígenas já demarcadas ou com pedidos de demarcação relacionados a comunidades que não estavam na área até a promulgação da Constituição Federal, perdem o direito a ela.

No Espírito Santo, cerca de 11 mil hectares de terras foram homologados após essa data, no início dos anos 2000, após intensa luta dos Guarani e Tupinikim em Aracruz contra a hoje Suzano (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria), por meio de autodemarcação e estudos técnicos que confirmaram a legitimidade do pleito.

Congresso Nacional

Em paralelo ao julgamento pelo STF, a tese do Marco Temporal também é discutida no Congresso Nacional. Na Câmara dos Deputados, foi aprovada por meio do PL 490, que segue agora para o Senado com o número 2903.

Essa tramitação, no entanto, é apontada como ilegal pelo coordenador jurídico da Apoinme e coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinaman Tuxá. “O Marco Temporal teria que ser discutido no Congresso por meio de uma PEC [Proposta de Emenda Constitucional] e não por um projeto de lei, porque ele fere a Constituição Federal”.

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