A dependência tecnológica afeta a todos em algum nível
O resgate das quatro crianças indígenas colombianas que passaram 40 dias sozinhas na selva tem muito a nos dizer.
A primeira coisa que me afeta é a declaração do avô das crianças de que a dificuldade para encontrá-las se deu por elas temerem as vozes, os latidos dos cães e todo o movimento das equipes de busca. Me parece que as crianças se sentiam caçadas e por isso mais seguras na selva, por conta própria. Aqui encontro grande semelhança entre a situação do índio na mata e a do negro nas cidades, sempre amedrontado, se sentindo ameaçado e perseguido, como se limitado à segurança de seus territórios.
Outra reflexão interessante está relacionada à capacidade de resistência, luta e resiliência daquelas crianças, para sobreviverem sozinhas na mata, tendo ainda que dar conta de um bebê.
Como anda a capacidade de nossas crianças de darem conta da própria vida, sem auxílio nenhum, até mesmo dentro de suas próprias casas?
Nos dias atuais, as crianças são preparadas, logo cedo, para o mundo conectado que vivemos. Aprendem a operar equipamentos da tecnologia de informação, depois a falar, ler, escrever, recebem os conhecimentos do mundo (Hannah Arendt), a tecne profissional para, então, estarem prontas para a vida.
Gosto de questionar o nosso modo de vida, principalmente no sentido das dependências a que ele nos submete. O quanto nos expõe à vulnerabilidade, à dependência de coisas que estão fora de nossa capacidade providencial. Basta observar o que acontece quando falta o sinal da internet, a energia elétrica, combustível, condução coletiva, dentre outras coisas, que nos novos tempos, são compreendidas como básicas para a vida, e que de fato percebemos que é basicamente impossível vivermos sem.
Em algum momento precisaremos de uma análise nietzschiana, que questione o que nos fortalece e o que nos enfraquece neste processo de modernização, automação, etc. Questionarmos a capacidade própria, de cada um dar conta de si em momentos possíveis de falência das tecnologias e garantir, na formação dos sujeitos, a capacidade de sobrevivência também na distopia do mundo técnico e tecnológico.
Além das questões práticas, mesmo as que parecem simples como lavar a própria roupa sem a máquina, cozinhar sem gás, chegar a algum lugar sem GPS, e etc., tem também as emocionais: reconhecer as próprias fraquezas e a força maligna dos julgamentos, defender-se pela vida afora, sempre se reconhecendo um ser em construção, inacabado até a morte.
Acredito que um evento como o da sobrevivência dessas crianças pode nos levar a refletir a criação e educação das novas gerações, principalmente no sentido da maior autossuficiência e capacidade de lidar com dificuldades práticas na própria existência, tanto de caráter físico quanto emocionais/sentimentais/espirituais.
De forma rasa, concluo que avaliar o quanto a superproteção pode enfraquecer; o quanto as exigências de constantes vitórias podem frustrar; e a dependência das novas tecnologias aprisionar, pode ajudar muito a construir consciências críticas e criativas, capazes de fazer uso de todos os avanços, inclusive tecnológicos, sem condicionar sua própria capacidade de existência às modernidades.
Everaldo Barreto é professor de Filosofia