O mundo dá voltas e os planetas nem sempre se alinham em uma rota constante.
O cantor se desmancha ao microfone – Meu coração tem paredes de vidro, todo mundo vê você lá dentro. A noite se desnuda lenta e insensível. A garota fingindo tomar uma taça de algum líquido dourado olha para o cantor com olhos sonhadores: cabelos azuis caindo em cachos até os ombros, lábios vermelho chama, top de paetês – o cantor, não a garota de olhar devorador.
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O mundo dá voltas, as modas mudam de gosto e de jeito – a garota nem usa batom. O cantor tem mulher e filhos, paga aluguel e condomínio com os ganhos da voz suave e rouca. Sabe que a vida não vai mudar: participar do Quem quer ficar famoso? E ficar famoso. Ou ganhar na loteria.
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A esposa é professora primária, e não sonha com aumento de salário ou passar em concurso publico, e nunca usou batom. A vida não vai mudar.
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A garota que se senta todos os sábados na primeira cadeira da primeira mesa na boate Barra do Remanso, não precisa trabalhar – a vida é curta e a sorte a jogou no seio de uma família rica. Mas é feia, e algumas plásticas não produziram os milagres esperados. Ouve o cantor e sonha ser essa que habita o coração com paredes de vidro.
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O cantor não gosta de cantar e odeia passar a noite acordado se rebolando para uma plateia desinteressada: poucos aplausos, parcas gorjetas. Pede ao garçom o nome da garota da primeira mesa, pesquisa no Google e gosta do que lê. A vida é curta e a voz não dura para sempre.
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O mundo dá voltas e os planetas nem sempre se alinham em uma rota constante. As vidas vividas no entremeio vão mudando também. O cantor vai atrás da garota que mora em condomínio de luxo e não reclama o dia inteiro que as crianças da escola não respeitam mais as professoras. Preciso dar um descanso na voz, ele informa, e sai de mochila nas costas. A garota o recebe de braços abertos: De agora em diante você vai cantar Paredes de vidro só para mim.
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Sob a luz dos refletores, o cantor se esguela ao microfone. Outra garota vem se sentar na primeira cadeira da primeira mesa, bem próxima do palco para ver e ser vista. E sonha ao som da melodia: Meu coração tem paredes de vidro… não usa batom mas tem olhos sonhadores. O cantor tira uma flor do bolso e joga para ela.
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A professora tem experiência em lidar com crianças – inseguras, inconstantes, temperamentais – a vida ensinou a ter paciência. Muitas outras garotas se intrometeram na sua vida, mas sabe que o cantor sempre volta. O coração dele tem paredes de vidro, o dela é de aço bem temperado.