Carta com 119 assinaturas foi lida em missa de apoio a padre Kelder e às comunidades do Território do Bem
Em uma religião hierarquizada como a Católica Apostólica Romana, normalmente, quando há presença de um bispo na missa, sua homilia acaba se tornando destaque. Nada contra o bispo auxiliar da Arquidiocese de Vitória, Dom Andherson Franklin, mas a opção foi começar a matéria pela fala de um padre, Kelder Brandão, o pároco da Paróquia Santa Teresa de Calcutá, em Itararé, no Território do Bem. Ainda “subvertendo” as prioridades, destaca-se um discurso seu feito no final da missa, embora a Igreja considere a comunhão o momento mais importante do ritual.
Isso porque foi no último momento da missa, emocionado com a leitura do manifesto em seu apoio e às comunidades do Território do Bem, que padre Kelder, que havia prometido não se pronunciar naquele espaço, decidiu pegar o microfone e, mais uma vez, como é recorrente em sua trajetória, defendeu aquelas que, em nossa sociedade, sempre estão em último lugar: as comunidades periféricas. As mesmas comunidades que sofrem dia a dia com as mais diversas formas de violência, entre elas, as das forças de segurança pública, que para tentar calar o sacerdote adentraram duas vezes nas dependências da igreja nessa semana que se passou.
A missa em apoio a padre Kelder, realizada na manhã deste domingo (23), na comunidade matriz Imaculada Conceição, em Itararé, foi organizada pelos movimentos sociais, a quem o padre comparou com os personagens da parábola lida no Evangelho, que ficaram escandalizados com o crescimento do joio em meio ao trigo. “Agiram como discípulos que, envergonhados, transformaram o escândalo em um ato de desagravo a uma ação obscena, ilegal, imoral, da Polícia Militar [PM], que com os portões fechados, na calada da noite, entrou fortemente armada neste espaço com cães farejadores sabe-se lá à procura de quê e pra quê”, disse o padre.
O sacerdote destacou, ainda, que os policiais fizeram isso sem mandado judicial, sem conversar com ele, com alguém da comunidade, com o arcebispo [Dom Frei Dario Campos] nem com o bispo auxiliar. “Transformamos o escândalo em ato de desagravo, de resistência à violência da polícia, que está acostumada a fazer isso na casa dos mais pobres, dos mais necessitados e vulnerabilizados”, disse. E fez um convite: “que a nossa voz se junte a tantas outras vozes das nossas periferias e digamos todos juntos ‘somos todos periféricos! Vidas pobres importam!'”.
A ideia do “somos todos periféricos”, dito em coro pela igreja, lotada, com punhos erguidos, veio depois do “somos todos padre Kelder!”, dito com a mesma intensidade ao final da leitura do manifesto, assinado por 119 entidades, entre elas, uma internacional, a Justiça Global. “Aprendemos com Padre Kelder cotidianamente que o amor precisa se expressar em atos concretos contra as injustiças, a fome, e a toda e qualquer prática de destruição da vida. Suas ações nos ensinam, no âmbito da igreja e também fora desse campo, que a paz somente será construída como fruto da justiça social e, jamais, como fruto da opressão das armas e da violência”, inicia o documento.
No decorrer do texto, lido pela Irmã Rita Cola, missionária Agostiniana, e por Carlos Alberto Pereira da Silva Chacrinha, um jovem da comunidade, é destacada a atuação do sacerdote em defesa dos mais vulneráveis, como na luta contra o crime organizado na década de 90; na construção dos primeiros programas de proteção aos direitos humanos, às vítimas e testemunhas de crimes ameaçadas; nas denúncias das execuções sumárias promovidas por grupos de extermínio no Espírito Santo; nas “masmorras capixabas [em] que se transformaram o sistema prisional e socioeducativo do nosso Estado”; junto aos povos indígenas e quilombolas; com os estudantes; no Grito dos Excluídos; com o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB); ao lado das vítimas dos homicídios ocorridos durante a greve da Polícia Militar.
“Sua voz ecoou na defesa de democracia como condição essencial para a equidade e contra o fascismo e a necropolítica que ressurgiram na sociedade brasileira! É assim que nosso Padre consegue se fazer onipresente na luta do camponês e na periferia das grandes cidades. Entre crianças e idosos. No meio da juventude, das mulheres vitimizadas, da população LGBTQIAP+, das pessoas com deficiência, dos encarcerados, da população em situação de rua, enfim, seus braços estão sempre envoltos a todos e todas cuja dignidade humana é diminuída por qualquer forma de violência”, diz o manifesto.
Sobre sua atuação no Território do Bem, o manifesto destaca que, desde que chegou à região, “nosso Padre se embrenhou em cada rua, becos, vielas e escadarias dessa comunidade. No cotidiano desse povo, se somou à potência de vida que brota do morro e que não suporta mais a morte de seus filhos, a violência, a opressão, o racismo, a fome, a desqualificação da vida na periferia e a indigência. Sua voz tem se levantado, junto com os moradores dessa região, dia após dia na cobrança do Poder Público e em defesa dessa e de todas as comunidades periféricas cujas realidades de opressão se repetem. Em função disso, ameaças e retaliações têm sido recorrentes na vida do Padre Kelder e da população mais pobre dessas e de outras regiões de periferia, mas têm se intensificado nos últimos dias. E isso exige de cada um de nós uma posição ético-política em defesa do trabalho e da vida do Padre Kelder e dos moradores do Território do Bem”.
O bispo auxiliar afirmou que “não poderia ter uma liturgia da palavra melhor no momento em que nós levantamos para o alto a bandeira da paz, do diálogo, bandeira que promove a vida e denuncia valores contrários a ela”, destacando, ainda, que “não podemos perder a sensibilidade de nos escandalizarmos quando vemos crescer joio onde semeamos trigo”. Ser trigo, apontou o sacerdote, é se colocar “diante daqueles que sofrem violência, de maneira especial os empobrecidos e vulnerabilizados, defender o trigo que nos alimenta e nos escandalizarmos com o joio que sucumbe a vida”.
Também defendeu que é preciso plantar “o trigo da compaixão, da ternura, da caridade, da defesa dos direitos humanos, o trigo que nos une como irmãos, que nos faz compreender que onde sofre um irmão nosso nós também devemos nos sentir atingidos”. Além de Dom Andherson, participaram da missa o padre José Geraldo Costa, da paróquia São Benedito, na Serra, e o pastor Enil Schubert, da igreja Luterana.