No Estado, criadores não comerciais e tradicionais de abelhas sem ferrão são invisibilizados em normativa estadual
Os criadores comerciais de abelhas nativas e exóticas contam agora com uma lei federal que lhes abre perspectivas de incentivo e fortalecimento. A notícia foi bem recebida pela Associação dos Meliponicultores do Espírito Santo (Ame-ES).
“A lei equipara a meliponicultura e a apicultura, é um ponto positivo, porque antes, a meliponicultura não tinha nenhum respaldo como cadeia produtiva. Agora ambas têm mais caminhos para se fortalecerem, com financiamentos mais fáceis e outras políticas”, avalia o presidente da Ame-ES, Adailton Gonçalves Pinheiro.
A Lei nº 14.639 cria a Política Nacional de Incentivo ao Desenvolvimento de Produtos e Serviços em Apicultura e se aplica aos criadores dos gêneros Melipona (nativas, sem ferrão) e Apis (abelhas exóticas, com ferrão) para fins de produção de mel, própolis, geleia real, pólen e cera. A publicação no Diário Oficial da União ocorreu nessa quarta-feira (26).
De acordo com o texto, o poder público deve ofertar linhas de crédito para o financiamento da produção, da comercialização e do processamento de produtos apícolas e meliponícolas em condições adequadas de taxas de juros e prazos de pagamento. A prioridade de acesso às linhas de crédito é para agricultores familiares, miniprodutores rurais e pequenos e médios produtores rurais, além de produtores organizados em associações, cooperativas ou arranjos produtivos locais. Alguns instrumentos indicados pela lei para a implementação de suas finalidades são: crédito rural, pesquisa e desenvolvimento tecnológico, assistência técnica e extensão rural; e associativismo.
A lei chega em um momento em que a meliponicultura capixaba começa a ter identificadas cientificamente as propriedades terapêuticas das abelhas nativas do Espírito Santo, conforme mostra uma pesquisa realizada por meio de parceria entre a Ame-ES e a Universidade de Vila Velha (UVV).
De modo geral, o estudo verificou que os produtos das abelhas nativas brasileiras apresentaram importantes atividades antioxidante, anti-inflamatória e antifúgica. Especificamente as nativas do Espírito Santo, apresentaram elevados índices dessas propriedades, alguns comparáveis aos das amazônicas, que já possuem mais estudos nessa linha.
Elitização
Se a Ame-ES comemora os incentivos federais à criação comercial, lamenta, por outro lado, a elitização que prevaleceu no texto da Instrução Normativa nº 11-N, publicada no Diário Oficial do Estado pelo Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) no último dia de 17 de julho.
A normativa “estabelece os procedimentos administrativos para Autorização de Manejo de Fauna (AMF) dos meliponários comerciais de abelhas nativas sem ferrão no Espírito Santo”. Por comerciais, entendem-se os criadores que possuem a partir de 50 caixas de abelhas, sendo considerados pequenos e médios os que possuem entre 50 e 500, e grandes os que possuem mais de 500.
Os criadores com até 49 caixas são considerados não-comerciais e não precisam de AMF, não podendo também, obviamente, vender os produtos das abelhas, fazendo da meliponicultura apenas um hobby ou atividade terapêutica. Esses correspondem a cerca de 90% dos associados à Ame-ES.
O texto da IN não trouxe qualquer avanço em relação aos pleitos feitos pela Associação em janeiro, durante a consulta pública aberta pelo Iema, mantendo uma posição elitista da atividade, avalia o presidente. A principal dificuldade imposta é a proibição de instalação de ninhos-iscas na natureza para captura de enxames que possam iniciar ou enriquecer o meliponário.
A estratégia, explica, é milenar e, se feita com os devidos cuidados, não só não é predatória como benéfica para as abelhas. “Não existe ocos na natureza com abundância para que elas se multipliquem naturalmente. Com essa carência de ocos nas árvores, elas não acham lugar para nidificar e se beneficiam dos ninhos-iscas”.
Nas cidades, essa carência de ocos naturais se reflete em ninhos sendo feitos pelas próprias abelhas em locais inusitados, acentua o meliponicultor Ricardo Braga, representante da AME-ES na Câmara Técnica. “Fazem colmeias em buracos de tijolos, padrões de luz, churrasqueiras ou fogões à lenha pouco usados”.
Em tempos remotos, essa estratégia de atração das abelhas era feita das mais variadas formas. “Estamos tratando de conhecimento tradicional, usado antes da chegada do açúcar dos portugueses. O conhecimento dos maias sobre abelhas sem ferrão é milenar, maravilhoso. Índios brasileiros também têm vasto conhecimento”, contextualiza.
Proibir essa prática para os criadores não comerciais de hoje, afirmam os meliponicultores, “é um atraso, uma elitização”. A norma “não está justificada” no texto e não tem qualquer embasamento prático, na avaliação da associação. “O certo seria colocar na regulamentação que, para usar iscas, que seja feito através de autorização do Iema e do proprietário do local onde vai ser colocado, excluindo, claro, áreas dentro de unidade de conservação”, propõe Adailton.
“A Instrução, como se apresenta, fortalece os criadores comerciais, mas pode impedir o acesso de pessoas com menor renda. É a elitização de uma atividade tão tradicional!”, reforça João Luiz Teixeira Santos, ex-presidente da entidade.
Perfil social ignorado
Adailton acrescenta que o Iema não considerou o aspecto social da atividade e como ela ocorre no Espírito Santo. “A maioria dos criadores é produtor rural com dificuldade de internet. E eles vão continuar informais ou se escondendo dos órgãos que deveriam facilitar a vida deles”, protesta.
Para além do potencial econômico, João Luiz destaca o caráter mais ambiental e mesmo terapêutico da atividade, no que se refere ao perfil predominante entre os criadores capixabas. “A maioria dos meliponicultores é composta por pessoas simples e que mora mais isolada e sem acesso aos pesquisadores. São essas pessoas as mais focadas na criação com pegada mais ambiental, e também, as que mais se interessam em promover resgate de salvamento e em conseguir as colônias de maneira mais natural”.
Para os criadores comerciais, a proibição dos ninhos-isca impõe o fim de uma tradição e também um custo a mais, visto que novas caixas só poderão ser adquiridas mediante a compra de outro meliponicultor.
Para os criadores não-comerciais, a situação é ainda mais injusta, pois, para comprar uma caixa, ele precisa da AMF e enfrentar a burocracia da regularização da atividade. Uma alternativa para isso também já foi proposta pela Ame-ES. “Bastava ele declarar que não quer se registrar, porque não vai ter mais do que 49 caixas, e com isso poder comprar a caixa, já que não pode mais usar o ninho-isca”. Mas nenhuma das sugestões da associação foi incorporada à normativa estadual.