Travestis e transexuais de todo o Brasil irão elencar denúncias e reivindicações para apresentar à Organização das Nações Unidas (ONU) e aos governos Lula (PT) e Renato Casagrande (PSB). Elas serão entregues por meio de uma carta a ser escrita durante o 1º Encontro Nacional das Travestis e Transexuais Defensoras dos Direitos Humanos, que acontece de 10 a 12 de agosto, em Nova Almeida, na Serra.
O evento é organizado pela Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (Gold) em parceria com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
O documento será fruto dos debates feitos ao longo dos dias. A diretora de projetos da Gold, Deborah Sabará, informa que um dos apontamentos será em relação aos organismos de apoio aos defensores dos direitos humanos, elencando onde existem, como funcionam e como acessar. No Espírito Santo, afirma, o que tinha foi extinto.
Além disso, será discutido se nos locais onde funcionam, as trans e travestis estão sendo acolhidas. Pessoas que fazem parte desse grupo, aponta, são ainda mais ameaçadas, pois além de defender os direitos humanos, algumas estão em posições que uma sociedade transfóbica não aceita, como no parlamento.
Deborah recorda o recente caso da deputada estadual de Sergipe, Linda Brasil (Psol), primeira mulher trans a ocupar uma vaga na Assembleia Legislativa daquele estado. Ela denunciou que, no dia 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQIA+, recebeu uma ameaça de morte através de um e-mail enviada para a Assembleia do Sergipe.
Deborah destaca que as trans e travestis passam por momentos de ameaça no legislativo brasileiro também por meio de “leis violentas, arbitrárias”. Ela exemplifica com a lei de autoria do deputado estadual Capitão Assumção (PL), aprovada em abril deste ano, que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero de competidores em eventos ou competições esportivas realizadas no Espírito Santo.
A diretora de projetos da Gold diz, ainda, que há na sociedade uma dificuldade de ver as trans e travestis como defensoras dos direitos humanos. “Quando se fala em defensores de direitos humanos, o que vem na cabeça de muitas são pessoas cisgênero”, diz. No entanto, acrescenta, há trans e travestis em diversos espaços, lutando por causas que vão além das relacionadas diretamente à comunidade LGBTQIA+. “Tem trans e travestis falando de favela, de meio ambiente, de questões raciais. Estamos na cidade, no MST, no campo, nas florestas, nas matas, somos camponesas, prostitutas, da saúde, da educação, de muitas áreas”, destaca.
Diante disso, Deborah aponta, inclusive, para a necessidade de os movimentos sociais também acolherem as trans e travestis em seus espaços, buscar compreender o contexto no qual esses grupos vivem, e trabalhar a temática da transfobia não somente de forma pontual, como normalmente é feito.
Convidadas
A deputada Linda Brasil é uma das presenças confirmadas no evento. O 1º Encontro Nacional das Travestis e Transexuais Defensoras dos Direitos Humanos contará também com a presença da cacica Majur Traitowu, primeira indígena trans a ocupar essa posição. Também estarão presentes presidente da Antra, Keila Simpson; a vice-presidente, Chopelly Santos; Symmy Larrat, da Secretaria Nacional dos Direitos de LGBTQIA+ do Ministério dos Direitos Humanos; representantes dos ministérios da Saúde e da Mulher; da ONU e do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
Homicídios
O dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2022, elaborado pela Antra, aponta que foram registrados seis homicídios de pessoas trans no Espírito Santo. O número coloca o Estado em 10º lugar no ranking nacional, quebrando uma breve trajetória de queda na quantidade de crimes desse tipo. Nos anos de 2021 e 2020, foram registrados três casos, portanto, a metade do número de 2022. Em 2019, foram quatro, em 2018 ocorreram seis e, em 2017, sete.
Deborah é responsável pela coleta dos dados no Espírito Santo e seu envio para a Antra, mas afirma que ainda não há uma prévia dos dados de 2023. Um caso teve repercussão na mídia, que foi o de uma mulher trans, morta no dia 2 de fevereiro, em Pancas, noroeste do Estado. A vítima se chamava Nety Cosme e foi assassinada com uma facada no peito após tentar ajudar uma mulher que estava sendo agredida pelo marido, que esfaqueou Nety.
No caso dos dados de 2022, a ativista alerta para o fato de que os números certamente são mais altos, pois há subnotificação. Muitas das vítimas, afirma, não são reconhecidas como pessoas trans, principalmente em cidades do interior. Há ainda o fato de que o Departamento Médico Legal (DML) não faz o registro de pessoas trans.
Um dos seis assassinatos contabilizados no dossiê da Antra foi o de Lara Croft, em julho do ano passado, em uma escadaria no bairro Alto Lage, em Cariacica. Os disparos foram feitos por um policial militar, que, juntamente com um colega de trabalho que o acompanhava, alegou que a travesti estava em atitude suspeita, sendo, por isso, dada voz de abordagem. Ela, então, teria tentado golpear os policiais com um barbeador. Entretanto, moradores afirmam que Lara foi abordada violentamente, sem que os tivesse agredido. O caso continua impune.
Os assassinatos por disparo de arma de fogo lideraram o ranking no Brasil em 2022, com 52% dos casos, seguidos de facadas (18%), espancamento ou estrangulamento (17%) e outros (13%). Quanto aos locais de ocorrência dos crimes, foi constatado que 61% dos assassinatos aconteceram em espaços públicos e 34% em locais privados. O dossiê não traz dados por unidade federativa, mas Deborah relata que, no Espírito Santo, a maioria dos crimes é por meio de facadas e espancamentos.
No que diz respeito aos locais, como muitas pessoas trans estão em situação de vulnerabilidade social e têm a prostituição como forma de ganhar o sustento, Deborah destaca que, normalmente, elas são assassinadas a caminho do ponto de prostituição ou depois de sair dele. Também há casos de pessoas assassinadas em casa, durante o programa. Analisando os índices de assassinatos entre 2017 e 2022, a média de pessoas trans negras assassinadas no Brasil é de 79,8%, enquanto que para pessoas brancas, esse índice é de 20%. No Espírito Santo, a maioria das vítimas é negra, acrescenta Deborah.
Violações
Em 2022, segundo o dossiê, foram registradas no País pelo menos 142 violações de direitos humanos contra pessoas trans, o que mostra uma pequena redução se comparado a 2021, quando foram registrados 158 casos. Em 2020 houve 55 registros. No ano anterior, a pesquisa não contemplou esse quesito. Nos anos de 2018 e 2017, foram registrados, respectivamente, 72 e 144 episódios. O documento destaca que há limitações para este monitoramento e subnotificação de casos, devido à coleta dos dados por meio de ocorrências relatadas nas mídias sociais.
Entre as violações de direitos sofridas pelas pessoas trans ressaltadas no relatório estão as negativas de reconhecimento e de emissão da identidade de gênero, de uso do nome social e de acesso ao banheiro feminino; cancelamento de corrida em aplicativo de transporte; xingamentos; violência contra profissional do sexo; estupro ou violência sexual; tratamento degradante em espaço público; negligência médica ou omissão de socorro; violações por agentes de segurança pública; demissão motivada pela Identidade de gênero.
No ano passado, o número de vítimas do gênero feminino foi de 130, cinco a menos que em 2021. Em 2020, foram 175. Nos anos de 2019, 2018 e 2017, os índices foram, respectivamente, 121, 158 e 169. O documento aponta, com base nos dados, que uma pessoa transfeminina (travestis e mulheres trans) tem até 38 vezes mais chances de ser assassinada, sobretudo no espaço público, que uma pessoa transmasculina ou não binária.
Outro dado que consta na pesquisa diz respeito ao total de assassinatos de trans no mundo, com base em um levantamento do projeto internacional Trans Murder Monitoring (TMM), que registro 4,6 mil homicídios de 2008 a setembro de 2022. O primeiro colocado no ranking é o Brasil, responsável por 37,5% de todas as mortes, ou seja, 1,7 mil. Em seguida, aparece o México, com 649 (14%) e os Estados Unidos, com 375 (8%).
O TMM aponta ainda que foram registrados 327 casos de homicídio de pessoas trans no mundo entre 1º de outubro de 2020 e 30 de setembro de 2022. Nesse período, o Brasil também foi o país que mais matou pessoas trans, com 96 mortes, seguido do México (56) e Estados Unidos (51).