TRF-6 confirmou ilegalidade das comissões criadas a partir de 2020 por um grupo de advogados de Baixo Guandu
O desembargador Federal Ricardo Machado Rabelo, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), negou recurso impetrado por um conjunto de Comissões de Atingidos e manteve a decisão em primeira instância que declara a incapacidade de um grupo de advogados atuar judicialmente em nome de todas as vítimas do crime da Samarco/Vale-BHP dos municípios onde as comissões estão instaladas.
A sentença, transcreve o desembargador, toma três decisões: “o reconhecimento da incapacidade processual e da ilegitimidade ativa das Comissões Locais de Atingidos; o fechamento do sistema de indenização denominado Novel; e a destituição da empresa Kearney da função de perita judicial”. Em seu despacho, assinado na noite da última quinta-feira (31), Ricardo Machado Rabelo concorda com o primeiro ponto: “indefiro o pedido de antecipação da tutela recursal e mantenho a decisão agravada no tocante ao reconhecimento da falta de capacidade processual e da ilegitimidade passiva das comissões de atingidos”.
Paralisar a atuação dessas comissões é uma luta antiga das instituições de Justiça que atuam na defesa dos atingidos pelo crime e compunham a Força Tarefa Rio Doce: Ministérios e Defensorias Públicas Federais e Estaduais do Espírito Santo e Minas Gerais (MPF, MPES, MPMG, DPU, DPES e DPMG). Em outubro de 2020, alguns meses depois da criação das primeiras comissões, em Baixo Guandu, noroeste do Estado, e Naque e Aymorés, em Minas Gerais (são 31 no total), o MPF denunciou uma série de irregularidades cometidas pelas mesmas em conluio com o então juiz substituto responsável pelo caso, na 12ª Vara Federal, Mário de Paula Franco Junior.
As comissões chegaram a ter uma decisão favorável em segunda instância, quando o caso ainda estava no TRF-1, mas, com a criação da 4ª Vara e o TRF-6, para onde os processos referentes ao crime foram transferidos, o novo juízo responsável deferiu contra as comissões, decisão confirmada agora pelo novo desembargador.
“Em linhas gerais, as comissões de atingidos foram idealizadas como órgãos locais baseados em uma auto-organização para que pudessem manifestar os anseios das comunidades atingidas dentro das instâncias extrajudicias de reparação. No entanto, o conceito foi interpretado de modo tecnicamente incorreto, para que se reconhecesse a capacidade processual e legitimidade ativa das comissões para fins judiciais”, explica o desembargador.
“Com a instituição do Novel, as Comissões de Atingidos passaram a constituir uma coletividade de atingidos representada pelo mesmo grupo de advogados. Usarei o termo ‘comissão de atingidos’ para indicar a figura abstrata prevista pelos TACs, enquanto o termo ‘Comissão de Atingidos’ será utilizado para indicar os agrupamentos concretos de pessoas de determinada localidade que vieram a juízo. No âmbito do Novel e das Comissões de Atingidos, várias pessoas da localidade se reuniram e atribuíram a advogados a prerrogativa de representá-los. No âmbito do TAC-GOV não havia a figura de representação das comissões por advogados”, prossegue, referindo-se ao Termo de Ajustamento de Conduta para a Governança (TAC-Gov), homologado em 2018, que visava garantir mais protagonismo aos atingidos no processo de reparação e compensação de danos, visto que a Fundação Renova já vinha sendo alvo de constantes denúncias por baixa efetividade no cumprimento de sua finalidade.
“A estrutura destas instâncias extrajudiciais, no âmbito dos termos de ajustamento de conduta firmado, era piramidal. As várias comunidades atingidas se organizariam por meio de comissões locais, acompanhadas de suas assessorias técnicas independentes. As várias comissões, a seu turno, levariam ao poder público, de forma ampla, incluídos União, Estados, Ministério Público e Defensorias, suas reivindicações. As comissões locais seriam espaços de representação popular e democrática para se assegurar o direito de participação dos atingidos no processo de reparação. A formulação das políticas públicas deveria seguir uma lógica de governança baseada na construção de um consenso participativo bottom to top, ou seja, a partir das dificuldades reais dos atingidos, as demandas seriam filtradas pelas instâncias até a formulação da política pública adequada”, descreve.
O caminho percorrido pelas Comissões, no entanto, foi outro. “O juízo da 12ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais admitiu a capacidade processual das Comissões de Atingidos. Apesar de pretender dar a elas o escopo previsto nos TACs, na verdade tais Comissões Locais eram meros agrupamentos informais com a constituição de poderes a advogados. No meu entendimento, houve um nítido desvirtuamento das funções idealizadas e atribuídas às comissões locais. De instâncias de representação e deliberação popular passaram a se constituir em grupos de pessoas representados por advogados que se autodenominaram representantes de uma localidade (…) Nos termos do TAC-GOV, as Comissões de Atingidos tinham a missão de fazer a interlocução entre os atingidos e as instituições e associações competentes para buscar e alcançar a efetiva e completa reparação. Não poderiam ter ido além disso”, expõe.
Sigilo impróprio
Há três anos, quando denunciou as comissões, o MPF apontou muitas excentricidades na atuação, em conjunto com o então juiz Mário de Paula, preservando, porém, a continuidade do pagamento de indenizações aos atingidos do município de Baixo Guandu, poupando ainda mais danos às pessoas que foram equivocadamente induzidas a aceitar as ações conduzidas pela comissão e pelo citado juízo.
Um dos pontos esdrúxulos apontados pelos procuradores foi a aprovação, pelo juiz substituto, do sigilo jurídico na tramitação da ação impetrada pela dita comissão. “É bom ressaltar que o efeito prático da decretação do sigilo foi impedir que a conduta da ‘Comissão de Atingidos’ fosse conhecida e fiscalizada justamente por aquelas pessoas que ela pretende representar. Quer dizer, os integrantes da ‘Comissão’ pretendem falar em nome de todas as pessoas de Baixo Guandu, mas o querem fazer de modo secreto, sem que essas pessoas possam conhecer aquilo que se faz, supostamente, em seu nome”. A decretação de sigilo, explicam, se deu após alguns atingidos de Baixo Guandu tomarem conhecimento da criação da comissão e manifestarem interesse em conhecer o que estava sendo negociado e decidido.
Como o sigilo foi imposto até mesmo contra o próprio MPF, o órgão ministerial salienta ser este o fato mais grave da atuação do magistrado, visto que, segundo o Código de Processo Civil e a Lei da Ação Civil Pública, em casos que envolvem direitos coletivos, como o presente, a intimação prévia do MPF é obrigatória. A intimação só aconteceu no dia 15 de setembro, após a publicação da decisão judicial fixando a matriz de danos quando então o MPF pôde tomar ciência das petições e decisões proferidas nos autos, que até então tramitavam em sigilo.
Ameaças e intimidações
Alguns meses após a denúncia do MPF, a Agência Pública publicou reportagem com base em áudios de uma das advogadas da Fundação Renova, Viviane Aguiar, em que ela faz ameaças e intimidações aos atingidos, dizendo transmitir orientações do juiz Mário de Paula , durante uma reunião realizada em 21 de janeiro daquele no, quatro dias após cerca de 50 pessoas, da Comissão de Atingidos de Naque/MG, terem realizado uma manifestação pacífica por seus direitos, interrompendo o fluxo na ferrovia Vitória-Minas, da Vale.
Na época, Heider Boza, da coordenação estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB/ES), destacou outros abusos cometidos pelo trio juiz-Comissões-Novel: “Ele precisa abrir mão do cadastro e do lucro-cessante, ou seja, dar uma quitação geral pra empresa em relação ao crime, apesar de vários estudos dizerem que a lama não pareceu de descer, que não cessou”, relatou.
O protesto dos atingidos em Naque expôs reclamações contra o Sistema Indenizatório Simplificado (Novel), criado pela Renova e homologado pelo juiz Mário de Paula em julho de 2020, em comum acordo com as comissões de atingidos de Baixo Guandu (ES) e Naque, ambas representadas pela advogada Richardeny Luiza Lemke Ott. A Pública ressaltou ainda que, até fevereiro de 2020, Richardeny trabalhava como assessora jurídica da prefeitura de Baixo Guandu, e que abriu seu escritório de advocacia no dia dois de junho, um mês antes de ganhar a primeira ação como representante da comissão de atingidos do município. Na sentença que reconhece a Comissão de Atingidos de Baixo Guandu, o juiz estipulou honorário de R$ 450 mil ao escritório de Richardeny, a serem pagos pelas empresas rés.
Suspeição do juiz
Em março de 2021, as instituições de justiça voltaram a peticionar sobre o caso, desta vez com foco no juiz Mário de Paula, impetrando um pedido de Arguição de Suspeição contra ele, com base em nove fatos e fundamentos jurídicos que, afirmam, apontam a atuação parcial e contrária aos direitos dos atingidos.
O comportamento de Mário de Paula, resumem os autores da Arguição, “além de causar tumulto processual e a inefetividade dos processos, gera uma situação em que a reparação integral buscada pelas Instituições de Justiça em favor de todos os atingidos é relegada a segundo plano em prol do atendimento dos interesses de uns poucos escolhidos – e favorecidos processualmente – pelo juízo, que os aconselha, aceita petições por e-mail, realiza reuniões extra-autos, aprecia com celeridade – às vezes em poucas horas – os respectivos pedidos e elogia advogados e os representantes das comunidades atingidas, desde que sejam ‘ordeiros’, quer dizer, que concordem com a posição do juízo. Àqueles que não aderem às soluções propostas (!) pelo Juiz Federal da 12ª Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, há apenas a opção de reiteradamente requerer que seus pleitos sejam ao menos apreciados, antes que se tornem inúteis após longo tempo transcorrido”.
Na exposição dos fatos, os procuradores, defensores e promotor denunciam a abertura de processos de pedidos de indenização a partir de e-mails encaminhados diretamente à secretaria da 12ª Vara Federal e alguns até diretamente enviados ao gabinete do juiz federal substituto, sem que o próprio MPF tenha sido comunicado. “Além da ausência de intimação, diversos processos referentes às demandas das ‘Comissões de Atingidos’, como os relativos às localidades de Aracruz, Conceição da Barra, Ipaba do Paraíso, São Mateus e Santana do Paraíso, tramitaram – ou ainda tramitam – em segredo de justiça, sem que se conheçam os motivos para tanto, o que inviabiliza o acesso e a atuação das Instituições de Justiça signatárias”, acentuam.