Estudo confirma contaminação de milho crioulo com proteína transgênica no ES e impulsiona esforços para prevenção
Uma pergunta feita há dois anos tem uma resposta cientificamente embasada: o Espírito Santo tem, sim, milhos crioulos contaminados com proteína transgênica. Confirmada, infelizmente, a suspeita, agora é preciso envidar esforços para ampliar os estudos e evitar a continuidade das contaminações.
Os dados e encaminhamentos são de um estudo pioneiro liderado pela Comissão de Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos à Saúde e Meio Ambiente do Fórum Espírito-Santense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos (Fesciat), coordenado pelo Ministério Público do Estado (MPES). O estudo foi realizado em parceria com a Comissão de Produção Orgânica do Espírito Santo (CPOrg), o Conselho do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor, presidido pelo Procon, e o campus de Santa Teresa do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), que cede seu Laboratório de Sementes para as análises.
Foram analisadas 63 amostras de milho crioulo, enviadas voluntariamente por agricultores de 14 municípios capixabas, em relação a uma proteína transgênica, CP4-EPSPS, que torna a planta de milho tolerante ao glifosato. A técnica utilizada foi a imunocromatografia. Dessas, seis apresentaram contaminação, o que equivale a quase 10% da amostragem.
“Houve contaminação de norte a sul do Estado. Só não registramos na região central, porque apenas um município, Colatina, enviou amostras”, avalia o professor do Ifes de Santa Teresa Lusinério Prezotti, que é coordenador da Comissão do Fesciat. Houve casos de uma contaminação mais elevada, como em Santa Maria de Jetibá, na região serrana, em que 20% das amostras apontaram transgenia.
O acadêmico explica que existem hoje cerca de 30 proteínas possíveis de serem utilizadas em “eventos transgênicos” de milho comerciais. Alguns desses eventos, ressalta, combinam dez proteínas transgênicas com diferentes características. A intenção é ampliar o estudo, envolvendo mais municípios (somente 18% dos 78 enviaram amostras) e proteínas transgênicas, pelo menos cinco ou seis, para traçar um panorama mais realista.
Nesse sentido, uma verdadeira força-tarefa está em curso, para, num primeiro momento, identificar quais os milhos transgênicos mais comercializados no Estado e, em seguida, ir a campo para coletar amostras nas lavouras, em lugares estratégicos, de grande produção de milho. “A gente acredita que o percentual de contaminação real seja muito maior, no mínimo 30%. Se a gente conseguir ter amostras variadas de pelo menos 50% dos 78 municípios, vai dar um resultado significativo”, estima Lusinério.
Até o momento, os municípios que participaram apresentaram os seguintes resultados: sem contaminação estão Montanha, no extremo norte; Colatina, no centro; Santa, Teresa, Santa Leopoldina e Guarapari, na metropolitana; e Iconha, Cachoeiro de Itapemirim, Muqui e Atílio Vivácqua, no sul. Com contaminação, estão: Conceição da Barra da Barra e Nova Venécia, no norte; Santa Maria de Jetibá e Domingos Martins, na metropolitana; e Alegre, no sul.
Prevenção
Em paralelo ao levantamento para coletas em campo, o Fesciat divulga um panfleto com uma síntese das regras de “Coexistência de milhos transgênico e convencional”, estabelecidas na Resolução Normativa nº 4 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), de 16 de agosto de 2007.
O material orienta principalmente sobre plantios de transgênicos feitos a menos de 100 metros de não transgênicos, em que deve ser feita a seguinte proteção: “bordadura de 10 linhas de milho convencional do mesmo ciclo e porte semelhante à variedade geneticamente modificada e distanciamento de mais 20 metros, que podem ser aproveitados com o mesmo híbrido ou variedade convencional (das 10 linhas), com outra cultura diversa, com estrada/rodovia ou mesmo com áreas de pousio. Importante ressaltar que é proibido o cultivo de qualquer variedade de milho transgênico na faixa de 20 metros”.
A maioria das contaminações, informa o coordenador, ocorre por plantios vizinhos e também troca de sementes entre vizinhos. Por isso a importância de respeitar a Resolução 4/2007 da CTNBio. Quem planta transgênicos, afirma, tem obrigação de cumprir com o afastamento mínimo exigido. E quem trabalha com sementes crioulas, precisa ficar atento ao movimento da vizinhança, pois a fiscalização, infelizmente, é inexistente. “Muitas vezes, quem não planta transgênico não conhece essa norma, mas ele pode acionar o Mapa [Ministério da Agricultura e Pecuária] caso se sinta lesado”, orienta, referindo-se ao Fala BR, da Ouvidoria do governo federal.
Lusinério Prezotti alerta, no entanto, que a norma da CTNBio está defasada em relação aos estudos mais atuais. “A gente tem certeza que 100 metros não é suficiente”, afirma. “O ideal é que, detectando que é transgênica a lavoura vizinha, o agricultor aguarde trinta dias após o plantio do vizinho, para os períodos de polinização não coincidirem. Não dá para confiar nessa distância”, orienta.
Áreas livres
O entendimento é compartilhado pelo engenheiro agrônomo José Arcanjo Nunes, doutor em Produção Vegetal e responsável técnico pelo Ensaio de Milho Crioulo de Muqui, no sul do Estado, a primeira e mais bem-sucedida experiência de resgate e difusão de sementes crioulas de milho no Espírito Santo e uma das referências nacionais sobre o assunto.
Realizado em parceria com a Associação Pró-Desenvolvimento Comunitário de Fortaleza e Adjacências, que congrega agricultores e moradores da comunidade de Fortaleza, o estudo completou 30 anos nesse 2023, com uma distribuição de dois mil quilos de sementes crioulas aos agricultores da região, que também abastecem a merenda escolar e algumas entidades filantrópicas da cidade.
Atual consultor da Prefeitura de Muqui na retomada do programa de distribuição de sementes crioulas, Arcanjo explica que o distanciamento mínimo recomendado entre lavouras transgênicas e não-transgênicas é de 400 metros e é essa a proposta que está em discussão no âmbito da elaboração do Plano de Manejo do Monumento Natural (Mona) Serra das Torres. A unidade de conservação, de proteção integral, foi criada em 2010 e deve ter seu plano de manejo concluído até dezembro próximo, estima o agrônomo.
Se aprovado, o plano vai ampliar a proibição para a zona de amortecimento, porque a lei federal já proíbe dentro da unidade, o que se estenderá também pelos municípios vizinhos de Mimoso do Sul e Atílio Vivácqua, fortalecendo uma lei municipal aprovada em 2012 em Muqui, que cria uma área livre de transgênicos no município para proteger o milho crioulo da comunidade de Fortaleza. “A lei municipal abriu uma discussão importante sobre áreas livres de transgênicos”, avalia Arcanjo. Agora, diz, é preciso criar engajamento para sua efetiva e ampla implementação.
Para Lusinério Prezotti, a inspiração de Muqui pode ajudar a criar leis semelhantes em outras regiões do Estado. “Regiões que concentram produções orgânicas podem ter leis semelhantes, como alto Santa Maria, em Santa Maria de Jetibá. Um outro trabalho paralelo que estamos fazendo é esse, de identificar esses locais e mostrar essa possibilidade. Não precisa esperar iniciativas institucionais. Os próprios agricultores podem solicitar isso às câmaras de vereadores de seus municípios. São iniciativa populares”, explica. “Por mais áreas livres de transgênicos no Espírito Santo!”, conclama.