quinta-feira, novembro 21, 2024
24.4 C
Vitória
quinta-feira, novembro 21, 2024
quinta-feira, novembro 21, 2024

Leia Também:

A tragédia do celular

Não direi que não choramos sua morte, mas todos ficamos de olho no celular

Dia chuvoso, o correio não traz notícia nem dinheiro, a turma do Zap anda sem inspiração, repetindo as mesmas piadas, as mesmas ‘frases inspiradoras’ e os mesmos Emojis. Até as fotos postadas são de aniversários passados. Ligo e reclamo, mas sempre me vêm com desculpas esfarrapadas: O celular caiu no vaso… O das tulipas? Não, o do banheiro. Ou Esqueci de carregar o celular.

*

Quem acredita que alguém esquece de carregar o celular, nos dois sentidos? Conheço gente que esquece de almoçar ou de tomar banho, mas o celular está sempre pendurado no pescoço. Esse novo adereço grudou em nós feito micose. Última pergunta que fazemos ao sair de casa: Peguei o celular? Tive uma tia que nunca esquecia da maquiagem, não importa o dia ou o evento, ou melhor, nem precisava de evento – de manhã só deixava o quarto depois de “pronta”, embora não fosse a lugar nenhum.

*

Tudo mudou quando viu um celular. Isso fala? Pequenininho assim? Fala! A tia caiu de amores, comprou o melhor do mercado, e nunca mais se desgarrou do mimo. Já aposentada, nomeou-se guardiã dos celulares da família, ligando antes de dormir – Não esquece de carregar… Telefone morto não dá recado… Quando alguém chegava, Trouxe o celular? Quando alguém saía – Não vai esquecer seu celular… Descobrir o Zap foi outra litania – Postar pra ela era tão importante quanto ir à missa… antes. Depois que aderiu ao eletrônico não foi mais à igreja porque o padre mandava desligar a geringonça.

*

Avisamos pra tia que aquilo era vício bravo, devia fazer umas sessões no VCA, a sigla dos viciados anônimos em celulares. Logo ela que quando via alguém com uma taça de vinho na mão taxava de viciada. Mesmo que fosse só meia taça. Futebol rima com cervejol, e a tia ficava em transe – Casa de pecadores! Final de jogo ia na lixeira do reciclável contar quantas garrafas haviam sido esvaziadas, e era boa na matemática – quantas garrafas para quantas pessoas!

*

O vício da tia era pior, não desgrudava do aparelho nem pra dormir – punha em baixo do travesseiro. Me ajuda a dormir, dizia, mas tomava três pílulas de melatonina. Pra tomar banho punha numa sacolinha de plástico, e ia pro chuveiro junto. A gente mostrava pra ela a estatística do dia, “Seu tempo de uso aumentou 28% essa semana”. Sempre aumentava, e ela achando muito engraçado, Até isso ele sabe? Muito fofo meu bichinho!

*

Em tendo uma gorda aposentadoria, a tia atualizava o celular todo ano, sendo portanto possuidora do melhor aparelho da família. Todo mundo de olho, e ela nem deixava tocar – Tira essa mão cheia de germes do meu fofinho! As crianças pediam para baixar uns joguinhos… Nem pensar! Gasta a bateria e eu fico isolada do mundo. Logo ela, que deixava a garotada pegar tudo que quisesse… Tia, posso ligar a outra televisão? Pode! Posso fazer um interurbano pra minha amiga? Onde ela está? Na Disney… Pode sim, mas fala pouco.

*

Não direi que não choramos sua morte, mas todos ficamos de olho no celular, mesmo com capa de pedrinhas cor de rosa brilhando na mesinha de cabeceira… A tia morava sozinha e antes de dormir mandava mensagem para os sobrinhos: “Deixem o celular carregado ao lado da cama, se eu precisar de ajuda ligo a qualquer hora da noite!” Nessa noite precisou e não ligou: o celular estava descarregado. No testamento deixou umas toalhinhas de crochê para os sobrinhos, e exigiu que o celular fosse enterrado com ela.

Mais Lidas