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Ameaças a escolas do campo se proliferam com aproximação do final do ano

Escola quilombola de Graúna é uma das afetadas. Argumentos dos gestores são estúpidos, afirma Comeces

Uma proliferação de ameaças de fechamentos e municipalizações autoritárias de escolas do campo tem acontecido de norte a sul do Estado, à medida que se aproxima o final do ano letivo e o momento de abertura de matrículas para 2024, sob a justificativo de cumprimento do Termo de Ajustamento de Gestão (TAG) do Tribunal de Contas Estadual (TCE-ES). O alerta vem do Comitê de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces), que classifica como estúpidos os argumentos levantados pelos gestores para justificar as medidas.

“É uma barbaridade, os gestores anunciam fechamentos e municipalizações sem qualquer estudo, sem qualquer diálogo com as comunidades, sem qualquer requisito legal. A única forma de enfrentamento é a mobilização das comunidades e o Comitê tem procurado dar o suporte para isso, mas são muitos casos, sempre com os mesmos argumentos falsos”, relata a educadora Carminha Paolielo, assessora do Comeces.

Ela conta que, recentemente, o conselheiro do Tribunal, Rodrigo Coelho, em um evento nacional, defendeu a estratégia do TAG. “Ele fez uma pergunta para as pessoas que estavam ali, se queriam uma boa escola ou uma escola perto de casa. Isso é de uma estupidez! Se a escola próxima de casa está ruim, a responsabilidade é única e exclusivamente do poder público. Não adianta vir com esse jogo, porque eles só declaram a própria inoperância dos governos, municipais e estadual, para a manutenção dessas escolas. É responsabilidade deles e direito constitucional das crianças e dos adolescentes, o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] estabelece o direito de estudar em uma escola próxima da residência e de boa qualidade”.

Divulgação TCE-ES

Um dos casos acompanhados pelo Comeces é o de Itapemirim, sul do Estado, onde a gestão do prefeito Doutor Antônio (PP) anunciou o fechamento de onze escolas do campo e a transferência dos alunos de todas elas para uma unidade que será municipalizada, a Escola Estadual de Ensino Fundamental (EEEF) Graúna, na comunidade quilombola homônima. “São muitas violações de direitos”, afirma o presidente da Associação Comunitária Quilombola de Graúna, Elivanes Paulo, o Badá.

Para além das questões já pontuadas pelo Comeces, do acesso de crianças e adolescente a uma escola de qualidade perto de casa, no caso específico de povos tradicionais, há a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina a consulta livre, prévia e informada antes de qualquer obra ou ação que impacte os moradores. As comunidades quilombolas precisam ser ouvidas. Querem municipalizar nossa escola e colocar nela todas os alunos das escolas fechadas. Hoje são 25 alunos por turma, vão ser mais de 40 se isso acontecer”, alerta Badá.

Qualidade e identidade

A EEEF Graúna é de excelente qualidade, afirma o líder comunitário. “O Estado investiu mais de R$ 10 milhões aqui. A estrutura é boa, somos uma das melhores escolas do Estado. Nós seguimos as diretrizes da educação quilombola, temos grupo de danças tradicionais, preservamos nossa cultura. Os professores, uma parte é efetivo do estado e os DTs são contratados por edital próprio, entre os moradores da própria comunidade. Temos medo de perder nossa identidade”, argumenta.

Divulgação

O medo se baseia na estrutura caótica do ensino no município, onde professores foram demitidos às dezenas este ano e várias turmas fechadas. As que continuam abertas, afirma Badá, estão em péssimas condições. “Temos as piores creches do Estado. Acabaram com aluguel de casas que têm ao lado e embolaram as crianças tudo num espaço pequeno. Elas não têm lugar para brincar. Se a prefeitura não consegue manter as creches em funcionamento, como vai receber uma escola como a nossa?”, questiona.

Badá acrescenta ainda a iminência de perda, já assumida pelo secretário de educação, Rafael Perin, do almoço fornecido aos estudantes. “Aqui os alunos que chegam para estudar à tarde, almoçam antes e os que estudam de manhã também almoçam antes de ir embora. O Estado oferece isso para a gente há mais de 60 anos. O secretário disse que não tem condições de manter”.

A comunidade denunciou a situação ao Ministério Público Estadual (MPES) nessa quarta-feira (11) e vai acionar também o Ministério Público Federal (MPF). No documento, a associação cita o TAG do TCE como estopim para as mudanças na educação do campo e quilombola do município, aponta a falta de consulta à comunidade e a violação de direitos educacionais e culturais, citando também a Resolução nº 8/2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE), sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.

A solicitação é para que o MPES investigue a situação e tome as medidas necessárias. “É crucial que o Ministério Público assegure que os processos de consulta e participação da comunidade sejam respeitados e que a qualidade do atendimento educacional seja garantida, de acordo com as diretrizes nacionais”, requer a entidade.

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Recorrência

Em São Gabriel da Palha, noroeste do Estado, outro caso semelhante. As comunidades rurais receberam o anúncio do fechamento gradativo de cinco escolas estaduais do campo – com encerramento de novas matrículas a partir do ano letivo de 2024 – e a transferência dos alunos para a escola municipal do Córrego do Bley, onde não há condições, segundo os educadores, de abrigar esse contingente de estudantes.

“A gente já constatou que essa escola do Bley não tem capacidade para receber mais de 60 estudantes, que estão nas escolas que querem fechar. Não tem essa estrutura, são apenas duas salas, e a previsão é de atender também a educação infantil. Qualquer pessoa pode ir lá e ver essa falta de capacidade. Mesmo que dobre os turnos, será impossível receber toda as crianças naquele espaço. Está reformada, está bonita, mas é pequeno”, relata Cassiano Fávero, coordenador do Comitê Municipal de Educação do Campo de São Gabriel da Palha.

O educador conta que o prefeito, Tiago Rocha (União), sequer assinou o TAG, mas tem usado o termo como justificativa, e tudo, a exemplo de Graúna, sem qualquer diálogo com as comunidades. “As famílias nunca foram ouvidas. Nós já fizemos várias tentativas de diálogo com a prefeitura e nunca tivemos sucesso. Quando eles chegaram para conversar, foi na verdade para anunciar a decisão”, lamenta, lembrando a entrega de um abaixo-assinado com quatro mil adesões, em abril último, quando o gestor havia se comprometido a não municipalizar as escolas do campo.

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Caso a proposta seja levada adiante, afirma, as famílias e o Comitê farão denúncias ao Ministério Público, sobre a negação do direito das crianças estudarem perto de casa, do direito das comunidades terem uma escola onde seja aplicada a educação do campo e da incapacidade da prefeitura de receber esse volume de crianças que ficarão sem suas escolas estaduais. O entendimento é que o município, assim como Itapemirim, tem menos condições de manter as escolas do campo.

“A política da Educação do Campo que o Estado realiza nessas escolas multisseriadas é uma referência. A Superintendência Regional de Educação de Nova Venécia, que é a que nos atende, é a referência no Estado e são justamente essas escolas que querem fechar”. A medida traria transtornos imensos às famílias dos estudantes, como as grandes distâncias e a perda de uma modalidade de ensino que dialoga com sua realidade. “Seria necessário rotas longas, mais de hora para uma criança chegar na escola, e isso em estradas ruins, que na chuva ficam em péssimas condições”.

Assim como já ocorreu outras vezes no passado, em que periodicamente os gestores anunciam tentativas de fechamento e municipalização, a comunidade novamente está decidida a lutar para, mais uma vez, ser respeitada em seus direitos. O município é o que conserva o maior número de escolas do campo, um total de doze, o que mostra a força das comunidades nas constantes lutas contra as políticas de extinção de escolas do campo. “A gente acredita muito nessa possibilidade de reverter. Sabemos que alguns municípios, mesmo tendo assinado o TAG, elaboraram justificativas para municipalizarem as escolas em 2024, como Vila Valério, onde a própria prefeitura fez o estudo”, conta. Há também estudos semelhantes em curso no distrito de Vinhático, em Montanha, na região noroeste, e em Santa Maria de Jetibá, na região serrana.

Má-fé

Cassiano destaca também uma pauta maior das comunidades, que é a inclusão de todas as escolas do campo estaduais na exceção aberta pelo Tribunal de Contas para as escolas de assentamentos. “O Comitê Estadual fez várias ações nesse sentido. Chegamos a fazer um ato em frente ao TCE, onde nos foi prometido um diálogo para construir uma proposta, mas esse diálogo nunca aconteceu. Foi muito indignante para a gente. Houve má-fé por parte do Tribunal de Contas, por não ter dialogado sobre o impacto do TAG nas escolas do campo”, avalia.

Sumika Freitas

A nova onda de municipalizações e fechamentos de escolas do campo no Espírito Santo contraria também encaminhamentos feitos em âmbito estadual e nacional, com a aprovação, em dezembro passado, das Diretrizes Estaduais da Educação do Campo pelo Conselho Estadual de Educação (CEE) e, em agosto, das diretrizes curriculares da Pedagogia da Alternância pelo Ministério da Educação (MEC). Na Assembleia Legislativa, tramita também um projeto de lei visando criar o Observatório da Educação do Campo, protocolado pela deputada Camila Valadão (Psol).

Na verdade, essas e outras propostas do TAG caminham na contramão do que há de mais moderno no mundo, conforme demonstrou Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação em maio passado, quando esteve na Capital capixaba para participar de uma audiência pública referente aos seis meses do massacre nas escolas de Coqueiral de Aracruz. Ele comparou o Espírito Santo com outros estados que praticam a mesma estratégia de desprezo com os povos do campo, como o Ceará, onde a cidade-referência para o TAG do TCE-ES fechou 60 escolas e gasta R$ 2 milhões por mês com transporte escolar

“O que se faz aqui no Espírito Santo, Ceará, Pernambuco e outros estados, é um ‘museu de grandes novidades’. Vitor de Angelo e demais gestores estaduais sequer têm consciência de que estão reproduzindo o projeto de reforma econômica da educação que está sendo revertido nos Estados Unidos e na Europa”, afirmou, na ocasião. 

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