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Grupo dos Onze: Muniz Freire teve célula de resistência pré-golpe de 1964

História que marca um episódio pouco conhecido do sul capixaba e no Estado foi resgatada por pesquisador

Muniz Freire, município do sul do Estado com menos de 20 mil habitantes, sediou um “Grupo dos Onze” entre o final de 1963 e o início de 1964. Com a formação de grupos de onze pessoas em todo o Brasil, o então deputado federal Leonel Brizola (1922-2004) planejava pressionar pelas reformas de base e resistir a um golpe iminente no país. Mas, com a ditadura militar se estabelecendo em 1964, a ousadia política acabou em prisão e perseguição para os militantes muniz-freirenses.

Quem estudou a fundo esse acontecimento pouco divulgado foi o historiador Herbert Soares. Em 2021, ele lançou o livro “O ‘Grupo dos Onze’: elites políticas e anticomunismo no município de Muniz Freire – ES“, baseado em sua pesquisa de mestrado em História na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

Herbert Soares (último à direita), junto com Carlinho, Jonatas, Renato e Mario. Foto: Arquivo/Herbert Soares

“Essa é uma história familiar também. Dos onze do grupo, sete são parentes meus, e sempre teve comentário na família sobre esse acontecimento. Acabou que a história ficou restrita ao ambiente familiar e a pessoas que viveram aquele período. Mas, quando lancei o livro e falei sobre ele em escolas, os mais jovens demostraram muito interesse. Eles ficam impactados em saber que a ditadura militar teve repercussão numa cidade do interior”, afirma Herbert Soares.

Conforme relata Herbert em sua obra, essa experiência política de 60 anos atrás teve vida curta, não rendendo mais do que algumas reuniões informais. O idealizador e líder do “Grupo dos Onze” de Muniz Freire foi o vendedor ambulante Jonatas Ribeiro Soares, admirador de Leonel Brizola que escutava seus discursos de rádio todas as noites.

Ao líder se juntaram: o ferreiro Ângelo Cizotto; o comerciante Carlinho José de Arêas; os lavradores Ilto Vieria e Mauro Rodrigues de Oliveira; o motorista Jair Ribeiro Soares; os funcionários públicos Lino Ribeiro Soares e Mario Ribeiro Soares; o lenhador Nelson Bolzan; o estudante universitário Renato Viana Soares; e o comerciante e então vice-prefeito, Romulo de Araujo. 

Há dois remanescentes ainda vivos: Mario, avô de Herbert Soares, que está com 97 anos e continua morando em Muniz Freire; e Renato, o mais novo da turma, que tem 79 anos e atualmente reside em Maceió (AL).

Divulgação

“Era uma realidade bem diferente. Os setores progressistas do Brasil reivindicavam várias reformas, e essas reivindicações se espalhavam pelo rádio e pelos movimentos sindical e estudantil. Foi dessa maneira que a gente tomou conhecimento e passou a se organizar para realizar essas reivindicações. E uma das formas de organização para lutar contra as oligarquias nacionais e locais eram os ‘Grupos dos Onze’ do Leonel Brizola”, relembra Renato.

Contexto histórico

Na década de 1960, Leonel Brizola usava as ondas da rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, para tentar organizar os setores populares e progressistas do Brasil em torno das reformas de base – agrária, administrativa, eleitoral, tributária, bancária, universitária e constitucional. Ele havia liderado a “Campanha da Legalidade”, para garantir a posse de João Goulart na Presidência, e estava em conflito com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do qual fazia parte.

O incentivo à formação dos “Grupo dos Onze” pela rádio era uma forma de criar um canal de comunicação direta do deputado com a população. O número onze fazia referência à quantidade de jogadores titulares de um time de futebol, esporte mais popular do Brasil. “A intenção era criar grupos pequenos, com mobilidade”, explica Renato (foto abaixo com Brizola).

Casa da Cultura de Muniz Freire

Inspirados pelos discursos radiofônicos de Brizola, milhares de “Grupos dos Onze” se formaram em todo o Brasil. No Espírito Santo, uma reportagem do Jornal Brasil da época chegou a apontar a existência de 50 grupos, com possíveis casos em cidades como Jerônimo Monteiro, Colatina e Montanha. Mesmo em Muniz Freire, outros grupos ensaiaram uma atuação.

No “Grupo dos Onze” pesquisado por Herbert Soares, estiveram entusiastas da vertente política representada por Brizola, membros do PTB local e simpatizantes de ideias progressistas em geral. Em sua maioria, os integrantes descendiam diretamente de dois ex-prefeitos de Muniz Freire: Lino Ribeiro de Assis e Joaquim Ribeiro Soares.

Com exceção de Ângelo e Nelson, todos os demais tem algum grau de parentesco. Carlinho era cunhado dos irmãos Jonatas e Jair, e este último é pai de Renato. Já os irmãos Lino e Mario são primos de Jonatas, Jair, Mauro, Ilto e Romulo.

O golpe de 1964 resultou na dissolução do grupo ainda em fase embrionária. Entretanto, seus integrantes já haviam assinado a lista de constituição do coletivo, que foi usada depois na denúncia sobre as supostas atividades subversivas do grupo feita à Justiça pelo então presidente da Câmara de Vereadores, José de Lima (UDN).

O anticomunismo crescente foi um dos motivadores para a denúncia, mas também havia questões da política local envolvidas, tendo em vista as ligações familiares dos integrantes e ao fato de um dos onze ser o então vice-prefeito de Muniz Freire. De acordo a pesquisa de Herbert Soares, o “Grupo dos Onze” liderado por Jonatas Soares foi o único que passou por um processo judicial no Espírito Santo.

Condenação e discriminação

Não havia provas de participação do grupo em quaisquer atividades relacionadas a combate armado, e todos eles negaram adesão ao ideário “comunista”. Nelson, inclusive, disse em depoimento que assinou a lista sem saber do que se tratava.

Ainda assim, nove integrantes foram condenados à prisão em 1966, num processo na Justiça Militar, sendo enquadrados na Lei de Segurança Nacional – apenas Lino e Mario escaparam. Como o processo correu no judiciário do Rio de Janeiro, eles tiveram dificuldades para apresentar defesa.

O líder Jonatas – que na época já havia ficado praticamente cego – foi sentenciado a um ano de prisão, e os demais, a seis meses. Com exceção de Renato, que morava em Vitória, todos cumpriram a pena no Fórum de Muniz Freire. Menos mal que o juiz do município na época, Arione Vasconcelos Ribeiro – lembrado pelo grupo como um “democrata” –, dava tratamento especial aos presos e fazia vistas grossas para suas escapadas noturnas do encarceramento, como apontam os relatos. 

Fórum de Muniz Freire, local da prisão do Grupo dos Onze. Foto: Acervo IGBE

Renato ficou detido no quartel do Corpo de Bombeiros de Vitória, onde também tinha ampla liberdade para circular. Continuou realizando os trabalhos do curso de Pedagogia, e seus professores lhe atestavam presença em aula – com exceção de uma docente, que o reprovou por falta por temer possíveis consequências para o seu marido, uma liderança do MDB da época.

“Foi interessante conhecer a vida militar e saber como as coisas acontecem por lá. Por mais de uma vez, tentaram me envolver em situações para que eu pegasse uma pena maior, mas eu era avisado pelos próprios militares. Um fato cômico é que quando cheguei no quartel, alguns soldados bateram continência para mim, pensando que eu era um dos aspirantes”, rememora Renato.

O fardo maior para os integrantes do grupo viria depois da prisão, com o estigma criado sobre eles. Muitos enfrentaram demissões em seus empregos e tiveram dificuldades de se recolocar no mercado. Ilto Vieira teve que vender sua propriedade em Muniz Freire e se mudar para o Rio de Janeiro, onde se tornou operário.

“As pessoas tinham um preconceito terrível. Para eles, nós éramos tudo comunistas. Chamavam-nos de antipatriotas e comunistas. Eu falava: ‘quem defendia as reformas de base, como eu defendia, não pode ser chamado de antipatriota. Antipatriota é todos aqueles que ficaram contra as reformas’. Teve muita gente que chegou a falar que nós tínhamos que ser morto porque nós defendíamos o Brizola”, declarou Jonatas Soares em entrevista de 2016.

Renato viu as portas se fecharem no Espírito Santo e foi trabalhar como jornalista em São Paulo e Brasília. Seguiu militando em organizações de esquerda, oficiais e clandestinas, até se exilar por oito anos na Europa, entre 1972 e 1979. Nesse período de exílio, ele teve a oportunidade de encontrar Brizola pessoalmente pela primeira vez.

“Ele dizia pra mim: ‘Renato, tu eras do nosso Grupo de Onze, venha agora para o PDT (Partido Democrático Trabalhista, fundado pelo político gaúcho em 1979)!’. Mas eu nunca fui brizolista, eu sou socialista. Naquele momento do ‘Grupo dos Onze’, era uma aliança estratégica. Ainda assim, a gente teve uma boa relação depois”, declara Renato Soares.

Tentativas de redenção

A redenção simbólica do “Grupo dos Onze” ocorreria apenas em 2012. Naquele ano, a Casa da Cultura de Muniz Freire, com a contribuição de Herbert Soares, organizou uma exposição fotográfica e um evento em homenagem aos quatro integrantes remanescentes do grupo naquela ocasião: Carlinho, Jonatas, Renato e Mario. Cada um deles recebeu um certificado que dizia: “Nossa homenagem por ter participado do movimento revolucionário em favor da democracia em nosso país.”

Apesar do reconhecimento, muita gente do município continua torcendo o nariz para o grupo. A Câmara de Vereadores não enviou representantes para o evento e, segundo Herbert Soares, uma figura influente da cidade os chamou de “um bando de comunistas beneficiados”, referindo-se às indenizações do Estado a perseguidos políticos durante a ditadura militar.

Arquivo Público ES

Outras situações despertam suspeita, apesar de não ser possível comprovar a relação com os eventos passados. Uma delas é a troca da nomeação de um trecho da rodovia ES-379, que havia sido batizada de “Jair Ribeiro Soares”, em 2015, uma homenagem ao motorista que fez parte do “Grupo dos Onze”. Sem nenhuma explicação formal, a estrada passou a se chamar “João Tomaz de Souza”, em 2023.

Renato Soares também cita como um indício da continuidade da perseguição a retirada de placas em homenagem aos seus pais de duas árvores que haviam sido plantadas por eles há décadas em Muniz Freire. “São coisas que restam de uma realidade que a gente acha que foi superada, mas não totalmente”, lamenta.

Bolsonarismo e anticomunismo

Após a redemocratização, Renato se tornou uma figura de destaque na política do Espírito Santo. Ele atuou na refundação do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e foi secretário de Estado no governo Albuíno Azeredo (1991-1994). Já distante da política regional, ele avalia que o Bolsonarismo provou que o reacionismo daqueles tempos de “Grupo dos Onze” continua vivo nos dias atuais. 

Arquivo Pessoal

“A gente viu que os setores reacionários do Brasil ainda levantam essa bandeira anticomunista. Eles tentam se organizar em torno dessas bandeiras repressivas. A gente viu muito isso com força no governo passado e na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro deste ano”, comenta.

Apesar disso, considera que há mais mecanismos de resistência: “As forças progressistas de hoje são bem mais consistentes do que as daquele tempo. E a comunicação não se pode comparar com o que havia naquela época. O nível de analfabetismo era muito mais elevado, e a comunicação ainda era predominantemente escrita. Não havia rede social, que permite uma propagação de ideias maior. Mas esse setor reacionário continua, não vai parar, não.”

Viana ainda visita Muniz Freire de tempos em tempos, e afirma que o bolsonarismo andou causando divisão entre seus familiares. “A família é grande e gosta de se juntar muito. Espero que ela consiga superar um pouco a divisão pelo bolsonarismo e passe a preservar os laços familiares, que são coisas importantes na vida também”, completa. 

Livro

O livro “O ‘Grupo dos Onze’: elites políticas e anticomunismo no município de Muniz Freire – ES“, de Herbert Soares, está disponível para venda na livraria “Torre de Papel”, na Praia do Canto, em Vitória, ou diretamente com o autor, em Muniz Freire – o contato é pelo e-mail [email protected].  

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