sábado, novembro 23, 2024
22.1 C
Vitória
sábado, novembro 23, 2024
sábado, novembro 23, 2024

Leia Também:

‘Repactuação deve dar centralidade à vítima e não aos interesses das empresas’

Relator de comissão externa na Câmara, Helder Salomão vai apresentar relatório final para votação na próxima semana

Divulgação

“O processo de repactuação deve dar centralidade ao sofrimento da vítima”. Esse é um dos cinco “princípios basilares” definidos no relatório apresentado nessa terça-feira (21) pelo deputado federal Helder Salomão (PT), relator da Comissão Externa Destinada a Fiscalizar os Rompimentos de Barragens, em Especial Acompanhar a Repactuação do Acordo de Mariana e a Reparação do Crime de Brumadinho (CEXMABRU).

“Dentre os pontos mais enfatizados no relatório, está a necessidade de participação efetiva da sociedade, atingidos e atingidas, para que haja reparação justa e integral. Hoje a centralidade está nos interesses das empresas”, pondera Helder.

A apresentação teve a participação do presidente da comissão externa, deputado Rogerio Correia (PT-MG), e se encerrou com um pedido de vistas coletivo. A versão final do documento está agendada para ser apresentada na próxima terça-feira (28), às 14h. Durante esse período, novas contribuições podem ser enviadas para apreciação do relator.

Uma alteração que já está prevista é de iniciativa do próprio relator: o acréscimo de um sexto princípio basilar, que é garantir especificidade e autonomia dos povos indígenas e outros povos tradicionais no processo de repactuação. “Já aparece no relatório atual, mas vamos colocar em evidência”, ressalta, refletindo a grande mobilização de povos indígenas do Espírito Santo e Minas Gerais para terem seus direitos específicos atendidos, a exemplo da ocupação dos trilhos da Vale que atravessam o Território Indígena de Comboios, em Aracruz, norte do Estado, que foi suspensa como voto de confiança ao juiz que retomou audiências de conciliação entre as empresas e as comunidades, para revisão do acordo de reparação imposto pela Fundação Renova em 2021.

A expectativa é aprová-lo e, em seguida, enviá-lo para todas as instâncias públicas envolvidas no processo de repactuação, nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – em especial o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), que coordena o processo de repactuação entre os governos federal e estaduais e as empresas – em âmbitos municipal, estadual e federal, além das organizações da sociedade civil que atuam com os atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP, que completou oito anos no último dia 5 de novembro.

“Após a aprovação, vamos tornar o relatório público e negociar com o governo e o TRF-6, buscando garantir o fórum de participação dos atingidos na repactuação”, afirma. “Que o relatório possa contribuir para que o novo acordo não seja uma mera repetição de Brumadinho”, destaca.

Da parte do TRF-6, a data do dia 5 de dezembro foi estipulada para uma tentativa de assinatura da repactuação, o que é desejado pelos governos e os membros da comissão externa, porém, sem garantias de que será confirmada.

“Nós não temos visto boa vontade das empresas em agilizar esse processo. Elas não falam ainda no valor. Temos medo que, acertado os aspectos políticos entre os governos, os entes federados, haja um impedimento, por sede de lucro, mais uma vez, por parte da Vale e da BHP Billiton. Parece que há um empurra-empurra das empresas sobre essa questão”, avalia o presidente da Comissão, Rogerio Correia.

“Acho que não vai ser possível [a assinatura no dia 5 de dezembro], porque há muita coisa para formatar e nós defendemos que, antes de anunciar o novo acordo, precisa passar pelo crivo dos movimentos sociais”, acrescenta Helder Salomão.

O primeiro princípio basilar também destaca as vítimas do crime, ao afirmar que “não haverá repactuação justa e integral sem a participação efetiva de atingidos e atingidas” e, para isso, há propostas de gestão dos recursos que garantam essa participação.

Bacia do Rio Doce

Além da centralidade e da participação das vítimas na gestão, outro princípio basilar é o de que “os recursos oriundos da repactuação devem ser utilizados nas áreas atingidas, ao longo da Bacia do Rio Doce, nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo”. O destaque para esse ponto se justifica pelas manifestações feitas pelos governos estaduais de quererem aplicar os recursos em outras regiões, principalmente da parte de Romeu Zema (Novo). “Existe, por parte do governo de Minas Gerais, intenção de que algum recurso seja colocar onde ele quiser e não no interior da bacia”, destacou o presidente da Comissão.

Os outros dois princípios afirmam que “o novo modelo de governança do acordo de reparação deve ser coordenado pelo governo federal com a participação de representantes da sociedade civil organizada” e que “as obrigações das empresas com as indenizações individuais e as medidas de recuperação do meio ambiente e do Rio Doce não encerram com a assinatura da repactuação do novo acordo”.

Helder Salomão defende que “o processo de reparação deve durar uma a duas décadas com investimentos em políticas públicas”. Políticas, afirma, voltadas a projetos sustentáveis, geração de emprego e renda e capacitação profissional dos atingidos. “O que nos interessa é que eles não sejam só indenizados com auxílio financeiro, mas que tenham perspectiva de melhoria de suas vidas”.

Após a definição dos cinco princípios basilares, o relatório é estruturado em nove capítulos. Os dois primeiros traçam um histórico dos acordos de reparação em vigor em Mariana e em Brumadinho. O terceiro, descreve os trabalhos realizados pelas diversas comissões que atuaram nos dois crimes. O quarto, apresenta os encaminhamentos feitos pela comissão externa.

Justiça britânica

O quinto capítulo trata da ação na justiça britânica contra a BHP Billiton, de que forma ele contribui e que preocupações esse processo suscita em relação à repactuação no Brasil. A ação é uma forma de pressão por agilidade por parte da justiça brasileira, reconhece Helder Salomão, porém, “a maior forma de pressão vem da resistência e resiliência dos movimentos sociais liderados pelo MAB [Movimento dos Atingidos por Barragens]”, destaca.

Além disso, a ação internacional pode criar falsas expectativas sobre o valor das indenizações e também esvaziar a possibilidade de um acordo justo e integral no Brasil, via repactuação.

A situação da água é tratada no sexto capítulo, em que é defendida a realização de ações relativas não só à contaminação por metais pesados advindos da barragem rompida, mas também ao tratamento que é feito dessa água contaminada.

“Deve constar do processo de repactuação essa situação e que as comunidades que, conforme descrito no relatório, tenham sido contaminadas por Tanfloc sejam indenizadas, bem como realizada uma pesquisa abrangente sobre a saúde da população e obtidos marcadores de contaminação da população e da água”, aponta o relatório da comissão externa.

O reconhecimento dos esportistas, especialmente os surfistas, como atingidos, é feito no capítulo sete.

Governança participativa

No oitavo, são detalhadas propostas para a participação efetiva dos atingidos e uma nova governança do processo de reparação, com inclusão de sugestões feitas pelo MAB, que tratam da “política de reparação dos direitos dos atingidos” e da “proteção e segurança das populações ribeirinhas”.

Basicamente, são propostos dois mecanismos de Estado, um organismo de gestão dos recursos e das políticas e um fundo nacional que atenda a três perfis de atingidos (grandes obras, rompimento de barragens e casos extremos decorrentes de mudanças climáticas).

A proposta do MAB também trata da necessária transição energética e de uma política energética que acolha as vulnerabilidades das populações economicamente mais frágeis, ao propor um “Programa de Revitalização e Alívio da Pobreza com Produção de Energia Renovável” para localidades rurais e urbanas em situação de pobreza.

Há ainda duas medidas emergenciais solicitadas: “disponibilização de cestas de alimentos e botijões de gás de cozinha para 100 mil famílias atingidas em situação de pobreza”, sendo que parte dos recursos deve ser destinada para um programa de formação e mobilização.

O documento do MAB também dialoga com o quarto princípio basilar do relatório, sobre a necessidade da coordenação da repactuação ser feita pelo governo federal, com participação da sociedade civil. O órgão central seria o Ministério de Minas e Energia, com a Secretaria Geral da Presidência atuando na coordenação ativa entre os ministérios e as populações atingidas e demais estruturas do governo (Eletrobras, Petrobras, BNDES e BB).

Outras propostas nesse sentido incluem: “criação de um fundo nacional para reparação, proteção, segurança e desenvolvimento de territórios atingidos, direcionado à solução dos problemas das populações atingidas e ribeirinhas, com participação dos atingidos no comitê gestor do fundo; ampliação e assento no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), com espaço para os atingidos; e construção de um Fórum Nacional de Energia com processos de participação e consultas institucionalizadas em múltiplos níveis e reconhecimento de processos autônomos da sociedade civil”.

Dialogando com o quinto princípio basilar, o relatório destaca que os recursos da repactuação devem não só atingir os objetivos de reparação, mas que também signifiquem “uma oportunidade de desenvolvimento sustentável para a região assentada em um novo modelo de desenvolvimento”.

As propostas do MAB nesse sentido abordam a criação de um “Programa de Revitalização e Alívio da Pobreza com Produção de Energia Renovável” de bases comunitárias, por meio da produção nacional de energia e alimentos, associada a um processo de educação energética e ambiental, como forma de avançar na transição energética na perspectiva do combate à pobreza energética.

Propõe também a criação de um “sistema de mapeamento da realidade das populações atingidas por meio de uma ferramenta de acesso público, eficiente e articulado com pesquisa popular a campo e inteligência artificial, nos moldes do já testado pelo Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] na barragem de Sobradinho”.

PNAB

O relatório também destaca a aprovação da Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Pnab), proposta pelo projeto de lei 2.788/2019, do deputado Rogerio Correia, (PT-MG) alcançada no dia 14 de novembro no Plenário do Senado e que agora segue para sanção do presidente Lula (PT).

Membro da coordenação do MAB, Heider Bozza relata preocupação da organização com a promulgação da Pnab de forma a não ter retrocesso. “As grandes empresas do setor elétrico têm feito pressão para o presidente vetar”, alerta. Por sua vez, mesmo sendo aprovada, a lei não retroage, então o fundo nacional dos atingidos, endossado pela comissão externa, “pode ser uma tentativa de reparação dos passivos [de desastres anteriores] no Brasil”.

Recomendações e constatações

Por fim, o relatório traz 44 recomendações ao TRF-6, governos e empresas envolvidos na repactuação, destacando uma delas: “assegurar transparência no processo de repactuação do acordo, com o acesso de atingidos e atingidas a todas as informações a ele referentes”.

Nas constatações finais, destaca que “os atingidos e atingidas não tiveram direito à efetiva participação, as vítimas ficaram de fora em relação aos seus direitos individuais, os valores pagos pelas empresas foram insuficientes, e o acordo não teve governança adequada, por isso o processo ficou solto e favoreceu às empresas violadoras de direitos”.

Por outro lado, complementa, “fica também a esperança de que, neste momento liderado pelo novo governo, possamos avançar para que tenhamos um acordo que favoreça aos indivíduos, às famílias e às comunidades atingidas que têm sofrido com o descaso e  abandono durante os últimos anos”.

Isso porque a Comissão reconhece que “nos últimos anos, observou-se uma gravíssima omissão do Governo Federal no Comitê Interfederativo (CIF), situação que teve impacto negativo preponderante sobre a governança do acordo. Situação potencializada pela forma como a Fundação foi cooptada pelas empresas através de seu Conselho Curador, além das constantes judicializações das decisões do CIF quando estas contrariaram os interesses da Samarco, Vale e/ou BHP”.

Pressão

Nesse sentido, Helder Salomão lembra que a comissão externa anterior, CEXBARRA (destinada a acompanhar e fiscalizar a repactuação do acordo referente ao rompimento da Barragem de Fundão, da Samarco, que causou impactos severos nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, em especial nas comunidades e municípios da Bacia do Rio), que apresentou seu relatório em junho de 2022, teve papel fundamental para evitar um acordo de repactuação danoso aos atingidos. “Se não tivesse sido feita, poderia ter sido fechado o acordo no ano passado eivado de interesses eleitorais, principalmente do governo de Minas Gerais”.

O novo relatório, ressalta, é um “instrumento de pressão para garantir os princípios basilares e para que as recomendações apresentadas por nós sejam consideradas na conclusão da reparação”.

“A comissão externa é um instrumento do Legislativo para fiscalizar o Executivo. À medida que o Executivo assume protagonismo na condução do acordo, a comissão assume papel importante dando voz às nossas demandas e espera que o Governo Federal leve em conta esses pontos do relatório, e também os governos estaduais, especialmente o Espírito Santo, aprovando também a Peab, e as empresas, claro”, concorda Heider Bozza.

Mais Lidas