Nelci e Geane relatam transformações pessoais vividas na luta pela terra e importância das políticas de fomento
Quem tem medo da reforma agrária? A pergunta surge da conversa com a trabalhadoras rural Nelci Sanches Rocha, que neste 2023 completa vinte anos de vida no Assentamento Florestan Fernandes, em Guaçuí, região do Caparaó. As transformações pessoais, fruto da luta pela justiça fundiária, afirma, são ainda anteriores à conquista da terra e a fazem refletir diuturnamente sobre a necessidade de avanço da reforma agrária e das políticas públicas de estruturação dos assentamentos, como estratégia fundamental para alcançar justiça social no país.
“Eu já tinha 41 anos de idade, três filhos, nunca tinha tido carteira assinada, pouco estudo…e não conseguia lutar. Eu queria fazer um novo, mas não sabia como. Foi quando dei o maior passo na minha vida, que foi ocupar a terra. Não tem nem como explicar a mudança que foi na minha vida ter entrado para o Movimento Sem Terra. Na luta por um pedaço de terra para plantar, eu fiz uma revolução de conhecimentos. Através dos estudos, fui me construindo e me reconhecendo. Só que, do mesmo jeito que eu pensava antes, tem milhões que ainda pensam: o medo da reforma agrária”.
Hoje, prossegue Nelci, sabe o porquê desse medo: “é porque a reforma agrária não é só luta por terra, mas por conhecimento. O que eu temia era a formação política e ideológica. Eu era um ser meio alienado. Era tanto faz como tanto fez. Agora eu sei que é a gente que faz, eu sei como é a transformação social do Brasil e do mundo que a gente precisa e pode fazer. Hoje tenho meus 60 e bordoada, trabalho como nunca, mas sou aposentada, estou tranquila. Tirei carteira de habilitação aos 62 anos. Trabalho porque gosto, sou muito feliz”.
Nelci é uma das dezenas de mulheres beneficiadas com programas de apoio a grupos produtivos realizados pela superintendência capixaba do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra-ES) neste mês de novembro em quatro assentamentos nas regiões metropolitana e sul do Estado. A previsão é aplicar recursos da ordem de R$ 672 mil, em 75 operações financeiras. No Florestan Fernandes, nove mulheres foram beneficiadas com R$ 8 mil cada, totalizando R$ 72 mil do Fomento Mulher. Outras 66 operações de crédito – do Apoio Inicial, Fomento e Fomento Mulher – foram realizadas em outros três assentamentos, totalizando R$ 600 mil.
No assentamento Santa Clara, em Viana, na Grande Vitória, Geane Costa de Souza conta que conseguir a terra para tirar dela o seu sustento e de sua família foi um sonho realizado há oito anos e que aguardava políticas públicas como as que chegaram agora, para lhe trazer mais segurança e tranquilidade para ampliar o trabalho.
“O pessoal estava esperando há muito tempo. O governo anterior não deu assistência nenhuma, a gente estava investindo com recurso próprio no café, banana, inhame, tanque de tilápia…”. Boa parte da produção ela comercializa com a prefeitura, para a merenda escolar. Com o Fomento Mulher do Incra, ela vai ampliar o seu galinheiro de poedeiras, irrigar e adubar o cafezal. “Agora temos um apoio melhor, incentiva a gente a trabalhar mais na terra”.
No seu assentamento, as dificuldades que permanecem são principalmente de acesso e educação. “A gente está a 17km de Viana sede, mas é difícil ônibus. Telefone e internet chegou há três meses! Escola de ensino médio para as minhas filhas é em Viana, tem o ônibus escolar, mas elas moram fora porque o ônibus de linha só tem três no dia, fica difícil para elas que são adolescentes se locomover assim”.
Em Guaçuí, a situação é semelhante. “A gente foi a Vitória receber uma homenagem [promovida pela deputada estadual Iriny Lopes (PT) no último dia 24] e, na volta, tivermos que andar a pé nove quilômetros no barro, porque carro não passa na estrada quando chove”, conta Nelci. Mas já houve momentos semelhantes na Câmara de São José do Calçado e Guaçuí e até documentário da Organização das Nações Unidas (ONU). “Das Camponesas”, conta, com orgulho.
O grupo de Nelci foi criado dentro da Associação de Rádio Comunitária do Assentamento Florestan Fernandes (Arcaff). Em 2009, elas conseguiram o primeiro contrato de merenda escolar, para 200 kg de pães. Em 2015, foram contempladas com Fundo Social de Apoio à Agricultura Familiar (Funsaf) para construção da agroindústria e maquinário. Em 2019, foram 900 kg de polpa de fruta para escolas. Em 2020, o contrato foi a Superintendência Regional de Educação (SER), para 21,3 toneladas, mas a pandemia fez reduzir a entrega. Em 2023, chegou a energia solar para a agroindústria (eram R$ 5 mil a 6 mil por mês de conta de energia) e um caminhãozinho.
Hoje elas são em seis mulheres e entregam para onze municípios, entre escolas estaduais e municipais. “Este ano a gente deve ter passado para as escolas e para vendas particulares em torno de 20 toneladas”, diz. Além do aumento da produção, outra meta é fechar com um capital de giro. “Gastamos quase R$ 40 mil no galpão, porque precisava mais. Mas acho que vai dar pra guardar um capital de giro também”.
O Fomento Mulher de agora é um novo passo na construção da prosperidade. “Melhorou mais ainda, porque algumas vão investir em mudas de frutas. Eu vou investir em água, porque já tenho plantação de goiaba, acerola, morango, muitas furtas, e preciso fazer uma irrigação por gotejamento”, descreve. Para 2024, a expectativa é com a volta também do Funsaf. “Ano que vem tem Funsaf de novo. A gente continua acreditando que dá certo e trabalhando”, comemora.
A cada vitória, Nelci renova a certeza de que a reforma agrária é o caminho. “Na minha infância eu passei fome com minha mãe, que trabalhava na casa de patrão. A cidade, cada dia que passa, fica mais difícil para quem é como eu, com pouco estudo. E eu me preocupo com a juventude. Tirar as crianças nossa da roça para estudar na rua é o maior incentivo para elas não quererem ficar no campo. Os educadores não são formados com ideologia do campo. De 100, tem três com a ideologia da terra Se a gente consegue trazer ela de volta para o campo, dar estudo a ela no campo, esse é o caminho”.
Ela acrescenta: “Por que os governos não dizem assim: ‘vamos distribuir terra e os pais vão ensinar os filhos a plantar o milho, a mandioca’? São milhões e milhões de hectares de terra vazios. E em dois hectares de terra, três hectares, uma família vive tranquila, tira o sustento dela e o que sobra pode vender. Eu falo com todo mundo: vale a pena. Se falar para mim que tem que ficar mais três anos debaixo de lona, eu digo que vale a pena. Só o sossego que tem na roça, debaixo das árvores, com seu alimento plantado e podendo vender também. Você vê Deus em cada fruta. Sou muito feliz”.