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Uma sombra no caminho

Ser ou deixar de ser – só saberei amanhã

A estrada se estica à frente, asfalto esburacado, poças d’água, paisagem ressecada. Ninguém à vista de um lado ou de outro, nenhum carro indo ou vindo. O marcador da gasolina vacila – tanque no finalzinho. Ir ou voltar, eis a questão. Shakespeare disse algo parecido quando mergulhou no lago e sentiu que a água estava muito fria. Persistir ou desistir, eis a questão. Gostou do que disse e voltou correndo para escrever seu Hamlet. E Hamlet não seria o mesmo sem essa perguntinha crucial. O bardo entendia das questões existenciais.

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Antes dele, Aristóteles já teria meditado sobre a complexidade do saber humano – O ignorante afirma, o sábio duvida, o sensato reflete. A frase teria sido cunhada quando um discípulo informou que o melhor dia da semana para jejuar era a segunda-feira. Eu duvido, disse o mestre. O discípulo se ofende e Aristóteles arremata – Seja sensato, pois o sensato reflete. E entrou para a história. Os gregos estavam sempre certos, garantiram os deuses. Aí inventaram o computador, e ninguém precisa saber mais nada: pergunte ao oráculo Google.

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Antes dele, Sócrates já teria dito, Só sei que nada sei, e sabendo que nada sei, sei mais do que quem não sabe que nada sabe. A desesperada motorista do carro que avança numa estrada vazia, com o ponteiro da gasolina despencando e uma tempestade ameaçando no horizonte, acha que mesmo sabendo mais do que aqueles que nada sabem está numa fria. Até assaltante, nesse momento e nesse lugar, seria bem-vindo. Só sei que não sabia que a gasolina não chegaria ao próximo posto.

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Inspirado nesses ousados pensadores, Descartes também queimou alguns neurônios tentando forjar a frase mais famosa de todos os tempos – Penso, logo existo. Um mosquito me mordeu e peguei dengue, portanto o mosquito existe e meu braço coça, mesmo se ele não pensa. Ou talvez pense, mas não fala, e não tem como nos contar o que lhe passou pela cabeça ao me picar. Quantas vezes nos arrependemos de alguma tolice que fazemos e deu errado, e dizemos, Por que não pensei antes de emprestar todo meu dinheiro? Não pensei, portanto, inexisto.

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Mesmo não sabendo filosofar, meu dinheiro mudou de mãos e não tive grana para encher o tanque. O carro existe, mas não pensa – com um ronco profundo morre em agonia e fico no meio do caminho, sem gás e sem GPS. O sol morrendo aos poucos cria uma sombra comprida sobre o asfalto – eu com minhas teorias filosóficas. Nenhum outro veículo passa por mim, indo ou vindo, e já estou esperando há dias. Hoje acabou a provisão de biscoitos maria. Ser ou deixar de ser – só saberei amanhã.

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