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Ato na ‘Usina na Morte’ lança memorial dos desaparecidos na ditadura

Centenas de pessoas, entre familiares e amigos das vítimas que tiveram os corpos cremados, participaram da caminhada

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“As cinzas que nós testemunhamos aqui vão alimentar as lutas que teremos pela frente”. Esta frase, de um dos manifestantes, resume o sentimento de centenas de pessoas presentes ao tombamento da “Usina da Morte”, onde foram incinerados 12 corpos de vítimas da ditadura, transformada em “Casa da Vida” nessa quarta feira (6), em Campos dos Goytacazes, Estado do Rio, em área ocupada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). 

Com palavras de ordem “Ditadura nunca mais” e “Reforma agrária já”, o ato marcou a criação do Memorial dos Mortos e Desaparecidos nos 21 anos do regime de terror e iniciou a “descomemoração” dos 60 anos do golpe militar de 64, para que nunca mais aconteça, em manifestações que se encerram em 1º de abril de 2024, em Juiz de Fora, Minas Gerais. No local, onde convivem 185 famílias do Assentamento Cícero Guedes, do MST, será criado, além do memorial, um museu sobre as atrocidades promovidas pela ditadura militar.

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 O “irmão Filipe”, conforme anunciado no microfone, deu o toque religioso ao evento: “Estamos aqui hoje com essa luta para fazer memória e afirmar que ela não nasceu hoje e não vai morrer hoje”, disse, abrindo o período de discursos, antes da passeata até os fornos, desativados em ruínas, parecendo furar o céu ensolarado, como disse o trabalhador rural Mário, para quem o movimento renova a palavra que traz na mente desde que chegou ao assentamento, há dois anos: “Esperança”.

O regime ditatorial é responsável pelo desaparecimento de 435 corpos de presos políticos, entre estes os incinerados pelo delegado Cláudio Guerra, da Polícia Civil do Espírito Santo, segundo ele mesmo revelou no livro Memórias de uma Guerra Suja, em depoimento aos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, que esteve no ato em Cambahyba.

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O relato de Cláudio Guerra foi possível a partir de contatos de Guerra com o então subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos da Presidência da República, Perly Cipriano, no primeiro governo Lula, e hoje coordenador do Centro Cultural Triplex Vermelho, de Vitória.

“Os companheiros foram assassinados e depois trazidos para serem queimados nos fornos, em Cambahya”, apontou Perly, preso político por 10 anos e vítima de tortura em quartéis localizados em Vitória, Recife e Rio de Janeiro, atualmente locais usados para negócios da área de turismo.

O ato em Cambahyba, para ele, representa o resgate da história do Brasil. “Precisamos mostrar aos nossos filhos e netos e às pessoas que ainda não sabem, o que, de fato, aconteceu. O tombamento da ‘Casa da Morte’ é extremamente importante para a história do Brasil e a criação desse memorial vai completar a revelação de um dos momentos mais trágicos da ditadura brasileira”, acrescentou.

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Ao abordar os fatos que tornaram possível as revelações de Cláudio Guerra no livro Memórias de uma Guerra Suja, Perly ressaltou que a “queimação de corpos na usina Cambahyba mostra a ligação da ditadura com o nazifascismo, que também utilizava fornos para desaparecer com suas vítimas”.

Destacou ainda que a localização do memorial na área hoje ocupada pelo MST é extremamente importante, pois eles serão os guardiões dessas memórias. “Não estamos dando um passo final, porque ainda existem muitas coisas a serem descobertas, as revelações da Comissão da Verdade, documentos e outras provas”.

Para Erô Silva, coordenadora nacional do MST, acolher esse movimento, promovido pelo Ministério de Direitos Humanos, várias entidades de trabalhadores, sindicatos, universidades e partidos políticos, é “contribuir para desvendar as maldades dos porões da ditadura”, enfatizando que “aqui também tombaram líderes da causa dos sem-terra, como Cicero Guedes”, que dá nome ao assentamento, localizado na zona rural do município de Campos.

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Mônica, neta do jornalista e advogado Orlando da Silva Rosa Bonfim Júnior, desaparecido em 8 de outubro de 1975, muito emocionada, em companhia do filho, Vinícius, disse: “Isso aqui é um sopro de Justiça, um sopro de memória, que é pra gente nunca esquecer. Ela é filha do cineasta Orlando Bonfim Neto, que viveu muito tempo no Espírito Santo, já falecido.

“A gente estar aqui em um lugar que foi muito deletério para a vida, onde tantas pessoas morreram e outras foram trazidas para desaparecerem, é uma coisa muita boa de viver, muito emocionante”, destacou Mônica, moradora do Rio de Janeiro.

Além dela, participaram do ato vários familiares, companheiros e amigos de Ana Rosa Kucinski Silva (ALN), Armando Teixeira Frutuoso (PCdoB), David Capistrano (PCB), Eduardo Collier Filho (APML), Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira (APML), João Batista Rita Pereira (VPR), João Massena Melo (PCB), Joaquim Pires Cerveira (FLN), José Roman (PCB), Luiz Inácio Maranhão Filho (PCB), Thomáz Antônio da Silva Meirelles Neto (ALN) e Wilson Silva (ALN). 

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Todos eles tiveram os corpos queimados nos fornos da Usina Cambahyba, na década de 70, em ações promovidas pelo delegado Cláudio Guerra, segundo ordens de comandantes militares. Os rostos das vítimas, impressos em cartazes, podiam ser vistos no meio da multidão formada nas duas tendas armadas no assentamento do MST, onde se misturavam políticos, sindicalistas, representantes de partidos políticos, militantes progressistas, dirigentes de entidades de trabalhadores e os assentados.

As caravanas partiram de diversos locais, do Rio, Espírito Santo, Minas Gerais, principalmente, sendo recepcionadas no assentamento pela coordenação do MST, com almoço colaborativo, no valor de R$ 15,00 – “Quem tem dinheiro come, quem não tem, também come” -, servido no barracão de madeira do assentamento onde residem 185 famílias, à espera do edital do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra), que garantirá a posse dos lotes, ainda ameaçada por “laranjas dos latifundiários”, que se inscreveram para ter direito.

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Maria Lúcia Pontes, diretora do Incra no Estado do Rio, diz que o edital sai em março de 2024, mas faz uma ressalva: “Os assentados terão prioridade, mas haverá muita concorrência”, confirmando o temor dos assentados, que se afirmam decididos a continuar “plantando milho, arroz, feijão, arroz, abóbora, para o povo matar a fome”, e na luta pela terra, para que a Justiça seja feita. E se juntam à multidão que canta “(…) quem sabe faz a hora, não espera acontecer” até os fornos da morte, onde, aos pés das chaminés, foi plantada uma muda de Pau Brasil, em meio a choros de saudade e “esperanças de paz”, como disse Eneida, neta de David Capistrano, um dos desaparecidos nos horrores da ditadura.  

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