Vereador André Moreira e governador Casagrande protagonizaram lados opostos da luta socioambiental em 2023
Apelo social midiático e estratégias políticas de costura de alianças dentro dos parlamentos são elementos decisivos na definição de legislações ambientais. A conhecida dobradinha se mostrou explícita ao analisar dois episódios marcantes da luta socioambiental capixaba em 2023: a aprovação da lei municipal de qualidade do ar, em Vitória, e do novo licenciamento ambiental, em âmbito estadual.
Na Capital, um fato histórico foi alcançado no dia 19 de dezembro, com a sanção, pelo prefeito, Lorenzo Pazolini (Republicanos), da Lei nº 10.011/2023, que estabelece políticas, normas e diretrizes de proteção da qualidade do ar na cidade, com base nas mais modernas recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). A lei advém do Projeto de lei nº 54/2023, proposto em março pelo vereador André Moreira (Psol).
Sobre o pó preto, que não tem recomendações da OMS nem do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), a lei estabelece o valor máximo de 5g/m².30 dias em área não industrial e 10 em área industrial. Conforme explicou o vereador André Moreira (Psol), autor do PL que originou a lei, os números foram resultado das médias encontradas após análise dos 36 meses anteriores à propositura do projeto.
A lei também prevê a criação de uma rede municipal de monitoramento da qualidade do ar, “para não ficar à mercê do Iema [Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos]”, ressalta o autor, lembrando que o órgão estadual deixou de medir o pó preto por meses seguidos nos últimos anos, entre outras inovações, agrupadas em oito principais pontos.
Seu impacto tende a extrapolar a Capital. “Vai ser a ponta de lança da qualidade do ar na Grande Vitória”, considera, citando uma lei estadual em discussão na Assembleia Legislativa, sob a liderança de Fabrício Gandini (PSD), que prometeu aprovar uma lei eficiente ao assumir, em fevereiro passado, a presidência da Comissão de Meio Ambiente da Casa.
Coalização suprapartidária
Em Vitória, a Emenda Substitutiva ao PL de André Moreira foi aprovada por ampla maioria na Câmara Municipal no dia 5 de dezembro, por meio de uma coalização suprapartidária que superou profundas divergências entre alas da esquerda e da direita do parlamento municipal.
A aprovação retumbante entre os colegas e a caneta do prefeito sancionando a proposta são resultado, avalia André Moreira, de uma conjunção de fatores, que teve como principal ingrediente o apelo social e midiático da pauta, visto que a cidade vinha repercutindo, há um mês, o aumento escandaloso da poluição por pó preto na cidade, que chegou a superar 500% em algumas estações de monitoramento.
Diante de evidências tão gritantes, somente dois vereadores votaram contra o projeto e não conseguiram repetir a manobra engendrada no episódio da tentativa de descriminalização da pesca artesanal, em que os PLs da oposição – no caso da vereadora Karla Coser (PT) – foram paralisados e dois PLs repentinos do Executivo foram levados a votação com pedidos de urgência urgentíssima, atropelando ainda trâmites básicos, como a não consulta ao Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (Comdema).
No caso da qualidade do ar, houve, sim, uma tentativa semelhante por parte da prefeitura, que protocolou PL praticamente idêntico ao de André Moreira pouco depois. Porém, o projeto ficou em análise no Comdema por meses, com sucessivos pedidos de vistas, o que motivou, em outubro, protestos das entidades que representam a sociedade civil no colegiado contra a postergação, nítida manobra para evitar sua apreciação pela plenária do Comdema.
Assim, quando o escândalo dos 500% de aumento de poluição estourou, em novembro, não houve tempo hábil para acelerar a tramitação do projeto do Executivo e a proposta de André Moreira, já muito presente nas manifestações públicas contra a poluição, acabou sendo apoiado pelos vereadores e, para evitar desgaste político, sancionado pelo prefeito.
Sim, é preciso ressaltar o elemento sociedade civil nesse contexto vitorioso, pois a luta popular por um regramento mais rigoroso contra a poluição atmosférica vem de longa data. Somente a ONG Juntos SOS ES Ambiental, realiza há 14 anos o Ato contra o Pó Preto, na Praia de Camburi, conclamando a sociedade para exigir legislação e fiscalização efetiva contra a poluição produzida pela Vale e ArcelorMittal. Foi a entidade quem conduziu a redação do PL de André Moreira, o único parlamentar a assumir a gigantesca missão de enfrentar, efetivamente, as duas gigantes da Ponta de Tubarão.
Durante o último Ato em Camburi, realizado no dia 15 de novembro, os ambientalistas exaltaram especificidades da poluição do ar da Grande Vitória, como o famigerado pó preto e brilhante, carregado de minério de ferro e carvão dos pátios de matérias-primas da mineradora e da siderúrgica, e a existência de mais enxofre no ar da região metropolitana capixaba do que em São Paulo.
‘Enclausuramento já!’
Na ocasião, o vereador também bradou em alto e bom som que “enclausurar pátios de poeira não vai causar desemprego na Vale e Arcelor”, fazendo alusão a uma das principais reivindicações da ONG, que é a construção de dômus, estruturas que isolem as pilhas de minério e carvão, hoje expostas ao forte vento que ininterruptamente atravessa a Ponta de Tubarão, seja no sentido nordeste, na maior parte do tempo, seja sul, durante pouco mais de 60 dias por ano.
Os dômus são propostos inclusive judicialmente, no âmbito das ações civis públicas impetradas pela ONG Associação Nacional dos Amigos do Meio Ambiente (Anama) contra as duas empresas desde 2013. No último despacho sobre o caso, o juiz federal Fernando Cesar Baptista de Mattos, da 4ª Vara Federal Cível de Vitória, no âmbito da ação contra a siderúrgica (processo nº 0006440-95.2013.4.02.5001), concedeu prazo de 30 dias para que a Anama envie detalhamento do pedido de perícias judiciais relativas a danos ambientais e à saúde pública provocados pela poluição do ar emitida pela ArcelorMittal Tubarão. Mas o magistrado negou os pedidos de indenização dos habitantes da Grande Vitória em decorrência dos prejuízos ambientais e econômicos provocados pela poluição.
Em 2024, a expectativa é de decisões judiciais mais alinhadas com os anseios da população e de medidas práticas por parte do Executivo, pela aplicação plena da nova lei.
‘PL da Destruição’ é aprovado
No extremo oposto, está a grande derrota que marcou o ano de 2023 no campo socioambiental, que foi a sanção, pelo governador Renato Casagrande (PSB), da Lei Complementar nº 1073/2023, publicada no Diário Oficial dessa quarta-feira (27). A lei é decorrente do projeto 56/2023, enviado à Assembleia Legislativa pelo Palácio Anchieta e que é chamado de “PL da Destruição” pela Associação dos Servidores do Iema (Assiema), por servidores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e mais de 70 outras entidades e lideranças afins.
Na falta de um fato emblemático que materialize o perigo da nova lei, como ocorreu com o pó preto em Vitória, o “PL da Destruição” tramitou com rapidez na Assembleia – onde recebeu apenas quatro votos contrários, de Camila Valadão (Psol), Iriny Lopes (PT), Fabrício Gandini (PSD) e João Coser (PT) – e foi sancionado sem vetos nem mesmos aos pontos mais preocupantes apontados pelas entidades que se somaram ao repúdio ao projeto.
A possibilidade de um questionamento jurídico da lei, por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ou outro instrumento, é estudada por uma comissão do Iema.
A nova lei prevê a diminuição do tempo de análise do licenciamento ambiental, ao abolir ritos legais. No caso de algumas modalidades criadas, como o Licenciamento por Adesão e Compromisso e a Licença Ambiental Simplificada, o próprio empreendedor se encarregará de descrever os impactos ambientais do procedimento.
A normativa prevê ainda a criação da Comissão de Análise de Projetos Prioritários de Licenciamento Ambiental (CAPPLA), responsável por identificar e “dar tratamento prioritário e especial a determinados projetos que pretendam se instalar no Estado”. Também seria formado o Conselho de Gestão Ambiental, de caráter deliberativo e normativo, composto por “todas as autoridades licenciadoras e de gestão dos recursos hídricos”. Para os servidores do Iema, esses novos conselhos poderão suplantar a análise técnica do órgão.
Esse CGA, especialmente, traz um dos mais gritantes retrocessos, conforme explicou Silvia Sardenberg, diretora do Sindicato dos Servidores e Trabalhadores do Estado (Sindipúblicos) e servidora do Iema, em entrevista ao programa Entrevista do Século, da TV Século.
‘Só chapa branca’
“Esse conselho seria formado só por ‘chapa branca”, alerta a servidora, utilizando um termo que designa pessoas que representam interesses dos órgãos públicos e não da sociedade. No caso do CGA do novo licenciamento, os “chapa branca” incluem o secretário de Meio Ambiente, o diretor presidente e o diretor técnico do Iema, e os gestores do alto escalão de órgãos como a Agência Estadual de Recursos Hídricos (Agerh), Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf) e Secretaria de Estado de Governo (SEG), além de “três pessoas de notório saber”, convidadas pelo Palácio Anchieta, “sem caracterizar os critérios” que devem ser utilizados para escolher os tais especialistas.
O conselho, acrescenta Silvia, não tem qualquer participação da sociedade civil e tem a prerrogativa de poder retirar processos de dentro do órgão licenciador e decidir sozinho o que fazer, se aprovar ou não o empreendimento. “Ele [o conselho] chama um servidor para fazer a avaliação, mas esse servidor vai fazer sozinho, deixando tudo de lado o que já tinha na sua escala de trabalho, e eles mesmos [os conselheiros “chapa branca”] vão pegar o processo, avaliar o relatório e decidir se pode [licenciar] ou não”, descreveu.
“Você está retirando de uma autarquia que é técnica, prerrogativas técnicas dessa autarquia e levando para um conselho que é político. E isso desconsiderando totalmente o conselho estadual e os conselhos regionais de meio ambiente. Em nenhum momento o PL fala dessas instâncias, que já têm participação paritária de governo, empresariado e sociedade civil. Ele desconsidera todo esse histórico, sendo que o presidente do Consema é o secretário de Meio Ambiente”, ressalta.
“Fora que ganha jeton, para pessoas que já ganham salários que são consideráveis. É jeton por cada reunião que participa. Sendo que no Consema e Conrema, a sociedade civil não ganha nada”, acrescenta. O valor do jeton é definido no parágrafo 3º do Art. 24: “Os membros do Conselho Ambiental e a Secretaria Executiva receberão 20% de gratificação por sessão a que comparecerem, até o limite mensal máximo de 50% do vencimento do cargo comissionado – referência QCE-03”.
Audiências públicas
Outro ponto preocupante é a ausência de obrigatoriedade de audiências públicas – o projeto cita apenas que “poderá” haver audiências. “A gente percebe que essa lei foi feita para tirar a participação social de tudo”, comentou.
Por parte do Iphan, o principal questionamento é em relação ao artigo 6º, que permite que o licenciamento ambiental seja feito independente de emissão de autorização e outorgas de órgãos que não façam parte do Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), e delega ao empreendedor a responsabilidade de apresentação da documentação antes do início da atividade.
Também em entrevista à TV Século, o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no Espírito Santo, Joubert Jantorno Filho, explicou que, atualmente, essa comunicação sobre a documentação é feita entre Iphan e o órgão licenciador, por força de uma normativa federal. Com a alteração, corre-se o risco de os empreendedores iniciarem atividades sem o devido amparo legal e serem questionados quando as atividades já estiverem em curso.
Amplos poderes para Rigoni
Os amplos poderes que o novo licenciamento concede ao titular da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama) se alinham bem ao modus operandi do atual ocupante do cargo, o ex-deputado Felipe Rigoni (União). Declaradamente, um dos maiores defensores da normativa, ele tem se negado sistematicamente a dialogar com os servidores sobre a pauta, conforme afirma o Sindicato dos Servidores e Trabalhadores Públicos Ativos e Aposentados do Estado do Espírito Santo (Sindipúblicos), com quem o secretário já marcou e desmarcou pelo menos duas reuniões onde o assunto seria tratado junto com servidores do Iema.
Os técnicos da autarquia denunciaram a incoerência da nomeação do ex-deputado para o órgão ambiental máximo do Estado, crítica à qual o Psol se somou, ao citar a atuação do então deputado de forma contrária ao meio ambiente e ao trabalhador . A Assiema chegou a pedir a Casagrande que revisse a decisão, sem sucesso. Passados os três primeiros meses da gestão, os servidores cobraram reunião com o secretário, o único até hoje, afirma a Assiema, que não se apresentou ao Iema após nomeação.
Sal-gema
Entre as críticas dos servidores, do partido e de ONGs ambientalistas, está ainda o empenho que Rigoni dedica, desde a Câmara dos Deputados, para liberar a mineração de sal-gema no norte do Espírito Santo. Sua atuação começou em 2019, quando a tragédia de Maceió se tornou notória e ele quis aproveitar a paralisação iminente da atividade no Nordeste para destravar o leilão de onze áreas identificadas em Conceição da Barra pela Agência Nacional de Mineração (ANM). Bandeira de sua trajetória parlamentar, as tratativas em prol dessa mineração lhe renderam a alcunha de “embaixador capixaba do sal-gema”.
À frente da Seama, a cruzada continua, com a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para “conscientizar e integrar” as comunidades tradicionais à mineração de sal-gema em seus territórios. O GT, porém, não tem nenhuma cadeira para essas comunidades nem para a sociedade civil organizada, conforme consta o Decreto nº 5546-R, que institui o Grupo, publicado em novembro.
As comunidades quilombolas já afirmaram que não querem a mineração em seu território, tendo conseguido retirar três áreas do leilão da ANM. Estão também elaborando seus protocolos de consulta, nos moldes de Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
As oito demais áreas estão dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra, que ainda não concedeu autorização para as pesquisas solicitadas pelas empresas vencedoras do leilão. Pelo Plano de Manejo da unidade de conservação, mineração é permitida dentro da APA, mediante autorização do seu conselho gestor.