Regras agora precisam ser comunicadas às comunidades costeiras e colônias de pesca, reivindicam pescadores
O lugar tradicional da pesca artesanal está garantido nas duas unidades de conservação costeira e marinha criadas entre Aracruz e Serra, o Refúgio de Vida Silvestre (Revis) Santa Cruz e a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas. O direito foi estabelecido no plano de manejo e começa agora a ser divulgado oficialmente pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), por meio de cartilhas e redes sociais.
A divulgação é fundamental, pois há regras que, não sendo seguidas pelo pescador artesanal, podem gerar sanções como multas e apreensões de material de trabalho. “Antes de multar, precisa ir nas comunidades, fazer reuniões, dizendo que as UCs estão implementadas, que pode isso, não pode aquilo…”, reivindica Manoel Bueno dos Santos, o Nego da Pesca, presidente da Federação das Associações de Pescadores Artesanais do Espírito Santo (Fapaes), membro do conselho gestor das duas UCs e um dos representantes do segmento na elaboração do plano de manejo, ao lado de Paulo Cezar Negrini Garcia, o Paulinho, pescador artesanal de Santa Cruz; Nádia Mattos Rodrigues, presidente da Colônia de Pescadores de Barra do Riacho (Z-7); e Braz Clarindo Filho, da Colônia de Pescadores Z-5.
A comunicação com a comunidade é uma das obrigações institucionais do órgão gestor, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). “Eles falam que vão fazer, mas ainda não colocaram na agenda”, aponta. A cobrança, conta, já foi feita até na Capital federal, mas até agora nada de ações práticas.
“Hoje o Ministério do Meio Ambiente tem gestão compartilhada com o Ministério da Pesca, mas a gestão é compartilhada só quando interessa ao meio ambiente. Quando se trata da pesca, precisava de coordenação do Ministério da Pesca. Sequer tem conselheiro do Ministério da Pesca no Conselho Gestor. Que gestão compartilhada é essa? Cobrei do ministro, André de Paula, na reunião do dia 17 de janeiro que fizemos com ele em Brasília: ‘o senhor precisa falar com a ministra Marina da Silva sobre as decisões que estão sendo tomadas, que o Ministério da Pesca sequer tem conhecimento. Só Deus sabe se ele conversou com ela”, relata Nego.
“Agora mesmo, semana passada, dois pescadores de Jacaraípe estavam na praia lá, e, sem conhecimento, pegaram duas lagostinhas dentro do Revis. Notificaram os dois, uma multa de R$ 2,6 mil para cada um. O que a gente quer é que os pescadores, as comunidades sejam orientados. Não tem uma placa informando onde começa e termina o Revis e a APA. Não tem conscientização, mas na hora de penalizar, eles fazem”, reclama.
A comunicação diretamente com os órgãos também é falha, denuncia o presidente da Fapaes. “E a dificuldade que você tem de falar com eles? Chega lá no ICMBio e não é atendido, tem que agendar online. Aí você agenda, mas eles ficam a vida toda analisando aquele pedido e nunca chamam você. Enquanto isso, a penalidade fica correndo ali, e se a embarcação foi apreendida, continua presa”, descreve.
“Eles penalizam só os pequenos. O Estaleiro Jurong fez tudo o que está lá. Usaram dinheiro de compensação dos danos para fazer os estudos e poder criar as UCs. A Samarco e a Vale fizeram aquele crime, contaminaram tudo. Usaram o dinheiro do TTAC [Termo de Transação e Ajustamento de Conduta] para elaborar o plano de manejo. Passou o gasoduto lá e o dinheiro, que dizem ter sido R$ 400 mil, uma parte foi para outros lugares, falam que para a Lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul, enquanto o Revis e a APA aqui não têm sede, a gente não consegue falar com os gestores, não têm sinalização, não têm programa de comunicação, nem de educação acontecendo”, expõe.
Nego da Pesca diz que a falta de comunicação com os pescadores gera a maior parte dos problemas de gestão com esse que é um dos principais segmentos sociais que habitam o território onde as duas unidades de conservação estão inseridas, já que, por não conhecer as regras e o esforço feito para garantir o lugar tradicional da pesca artesanal, a classe acaba se colocando, muitas vezes, contrária à unidade, sem falar que pode cometer infrações sem saber.
“Eu sou favorável ao Revis e à APA desde quando o pescador continuar tendo acesso e trabalhando para sustentar sua família. O plano de manejo permite isso, mas precisa divulgar. Eles não podem usar a UC só para penalizar os pescadores, tem que fazer um trabalho de comunicação, educativo para todos estarem cientes do que pode e não pode. Infelizmente, o nosso pessoal não gosta de reunião, mas tem que encontrar o jeito de passar as informações”.
Essa forma personalizada de comunicar é uma das premissas da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece a obrigatoriedade de que empreendimentos públicos e privados que possam impactar territórios de povos e comunidades tradicionais devem fazer a “consulta prévia, livre e informada” aos moradores. Significa que são as comunidades que definem como a comunicação precisa ser feita para que caracterize um ato de boa-fé por parte do empreendedor, garantido a efetiva conscientização da comunidades sobre o significado do empreendimento, para que ela possa decidir se concorda com a sua instalação e, se concordar, expressar de que forma, sob quais condições pode acontecer.
Luta por direitos
Apesar de não usarem a OIT 169 formalmente, o processo de criação das duas UCs seguiu basicamente esses moldes, conta Nego da Pesca. Tudo começou no ano 2000, quando o então Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – ainda não havia o Ibama – anunciou a criação de uma unidade de conservação na foz do Piraquê-açú. O plano inicial era um parque nacional marinho e o objetivo, consolidar uma forma de proteção definitiva contra ameaças graves, como a mineração de algas calcáreas no fundo do mar, visto que anos antes, uma empresa chamada Thotam havia tentado se instalar na foz, com esse objetivo.
Em 2005, conta Nego da Pesca, o Ibama avisou sobre uma audiência pública que seria realizada para referendar a criação do parque. “Chegaram de uma hora para outra, porque o Ibama tinha esse vício de só dizer o que ia fazer em cima da hora, só comunicar, sem consultar a gente para nada. Soubemos da audiência pública três dias antes, mas fizemos uma grande mobilização e colocamos 600 pescadores, de Serra até Conceição da Barra, dentro do Sesc de Santa Cruz. Também levamos todos os secretários municipais da Serra, porque falamos com a prefeitura: vocês vão acolher esses pescadores todos quando eles ficarem impedidos de trabalhar pelo parque?”.
Num primeiro momento, conta, o superintendente do Ibama, que presidia a audiência, quis cercear o direito de fala dos pescadores e secretários, mas acabou cedendo, permitindo uma comissão compor a mesa. “O secretário de Desenvolvimento, o Mauro Rondon, que falou. E dois pescadores nossos também subiram”.
Dali, foi tirado um Grupo de Trabalho para ajudar a elaborar a proposta de unidade de conservação. “Colocamos o pessoal do Ibama, os cientistas, dentro de uma embarcação em Jacaraípe, para eles conhecerem a área que ia ser restrita para a pesca. Foram com a teoria deles e o GPS, e nós com nosso conhecimento tradicional, e mostramos para eles o que era o certo. Onde eles falavam que era areia, a gente dizia que era lama, onde eles diziam que era lama, a gente mostrava que era cascalho. E assim foi, eles coletavam o material e viam que a gente estava certo”.
Após anos de trabalho, somente em 2010 as unidades foram criadas, o Revis e a APA. Durante esse período, muitos conflitos com a pesca artesanal e impactos de gigantes de indústrias tornaram a vida do pescador ainda mais difícil. “Liberaram a área para o Estaleiro Jurong. A dragagem jogou tudo num bota-fora que fizeram em cima de um pesqueiro nosso, que hoje está dentro da área da APA”, exemplifica.
O plano de manejo demorou outros 13 anos para ser lançado. “Sem plano de manejo não tem como regulamentar o que pode e não pode fazer ali dentro. Mesmo assim, pegaram um pescador que morava em uma casinha de taipá ali, que estava com 100 metros de rede, multaram em R$ 100 mil e prenderam ele. Depois soltaram, mas não tiraram a multa. Isso em 2013 ou 2014. A gente não sabe em quanto está essa multa hoje, não sei nem se ele está vivo ainda. É a criminalização do pescador, que acontece o tempo todo”, denuncia.
Regras de uso
Um material informativo específico para a pesca tem sido divulgado pelo Núcleo de Gestão Integrada das duas UCs, o NGI/ICMBio Santa Cruz, sob a chefia do analista ambiental Fernando Repinaldo Filho. A publicação informa que o limite leste do Revis está 9,7 milhas náuticas (17,96 km) distante da costa e, no caso da APA, a distância é de 22,81 milhas náuticas (42,24km). Na parte terrestre, o limite norte da APA encontra-se na Praia dos XV, em Aracruz, e o limite sul na Praia de Costa Bela, na Serra. O limite norte do Revis fica na Praia dos Imigrantes, em Santa Cruz (Aracruz) e o limite sul na Praia do Rio Preto (entre Fundão e Aracruz).
“A APA circunda o Revis, que desempenha uma importante função ecológica como uma área mais restrita à pesca e servindo de ‘refúgio’ para diversas espécies marinhas, de forma a garantir a recuperação dos recursos biológicos e sustentabilidade da atividade pesqueira. Evidências científicas comprovam que as Áreas Protegidas Marinhas melhoram a saúde dos oceanos e o repovoamento dos peixes nas áreas adjacentes”, explica a publicação.
O material também ressalta que, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) – Lei Federal 9.985/2000 –, Unidades de Proteção Integral como os Refúgios de Vida Silvestre (Revis) só permitem o uso indireto dos recursos naturais, mas “o Revis de Santa Cruz prevê uma exceção para o uso, somente para a pesca comercial de pequena escala”.
Entre as regras, está a permissão para a pesca de emalhe, exceto na faixa de mil metros a partir da linha de praia. Estão proibidas: a pesca amadora/esportiva e a pesca de arrasto, além da “coleta, captura e comercialização de quaisquer organismos marinhos para fins medicinais, ornamentais e de aquariofilia” e da “pesca de cerco e de traineiras”, que estão proibidas em toda a APA Costa das Algas.
Biodiversidade e beleza cênica
As principais praias que compõem o Revis e a APA são: Marbela; Costa Bela; Costa Azul; Porto da Lama; Enseada das Garças; Gramuté; Praia Formosa; Portal; Praia dos Padres; Coqueiral; Santa Cruz; Praia dos Quinze; Putiri; Mar Azul; e Sauê, que possuem acesso a partir da Rodovia ES-010 (ICMBio, 2020).
Ainda de acordo com o Plano de Manejo, 53% da área terrestre da UC é composta por vegetação natural, a maior parte dela (38%), constituindo restinga, seguida dos manguezais (8,8%) e da Floresta de Tabuleiro (7%). Foram identificadas 143 espécies de plantas, incluindo seis ameaçadas de extinção.
“A região das UC apresenta uma alta diversidade de algas, macroalgas e algas calcárias”, destaca o plano, referindo-se a um ativo ambiental altamente cobiçado por mineradoras, também encontrado na cadeia de montanhas submarinas Vitória-Trindade.
Os bancos de rodolitos também caracterizam a região e necessitam de adequada estratégia para sua conservação. “Os rodolitos crescem lentamente, podendo levar mais de 8 mil anos para serem formados. Nestes bancos são encontradas diversas espécies de Algas Calcárias, principalmente do filo Rhodophyta”, acrescenta.
Entre os destaques da fauna, estão quatro das cinco espécies de tartarugas marinhas que ocorrem no Brasil, e pelo menos duas espécies de baleias: baleia-jubarte Megaptera navaeangliae e baleia-franca Eubalaena australis. Além disso, a área é importante para botos e golfinhos, com, pelo menos, três espécies de golfinhos, destacando-se o boto-cinza Sotalia guianensis, a toninha Pontoporia blainvillei e o golfinho-nariz-de-garrafa Tursiops truncatus.
“Os estuários dos rios Piraquê-açu e Piraquê-mirim, apesar de fora dos limites das unidades de conservação, são berçários de muitas espécies recifais e de fundos de areia e lama. As espécies que crescem no estuário migram para os recifes costeiros e fundos de lama de dentro do Revis e da APA. Na fase adulta, muitas espécies recifais vão migrar para os recifes mais profundos, ambientes característicos de peixes de grande porte e de reprodução, utilizando os bancos de rodolitos como corredores entre os recifes”, descreve o plano.
“Os pescadores que participaram de levantamento realizado pela Voz da Natureza em 2012 mapearam 22 áreas de relevância ambiental em mais de 2mil km² presentes nas UC e entorno. As áreas foram caracterizadas como de criação (berçários e criadouros), de ocorrência de espécies vulneráveis (golfinhos, tartarugas e cações), de alta relevância ambiental (alta diversidade do fundo, presença de corais, diversidade de algas e peixes), de grande importância para peixes migratórios e para ordenamento pesqueiro”, explica outro trecho.
Grandes impactos
O plano de manejo relata que as duas UC são circundadas por diversos empreendimentos de grande porte que influenciam na dinâmica ambiental do território. “Trata-se de empreendimentos industriais, portuários e petrolíferos, que realizam atividades de exploração, produção e transporte de petróleo, gás e derivados, produção e transporte de celulose e produtos associados, terminais portuários instalados e em instalação para cargas de naturezas diversas, estaleiros de montagem e reparos navais, incluindo dutovias na porção marinha da APA e no entorno terrestre das UC”.
Sobre o crime da Samarco/Vale-BHP, foram constatados 32 impactos negativos em pontos amostrais no RevisS e na APA. “Em suma, pondera-se ser notória a relação da presença de contaminantes químicos e alterações físico-químicas provenientes ou decorrentes do desastre, que geram impactos negativos sobre a biodiversidade. Alguns impactos estão descritos como incidentes somente na ‘fase aguda’ do desastre, enquanto a maior parte se mantém constante, indicando a manutenção de aporte de contaminantes enquanto os rejeitos permanecerem disponíveis no sistema dos cursos fluviais para serem mobilizados ao longo do tempo”.
Especificamente sobre as tartarugas marinhas, foi constatado “forte impacto pelos contaminantes da lama de rejeitos”. Segundo os estudos feitos, “as tartarugas que se alimentam na APA Costa das Algas tiveram mais ectoparasitas e maior incidência de fibropapilomatose. Os autores afirma que os resultados mostram um pior estado nutricional e maior dano hepático e renal nos animais acometidos pelos rejeitos. O estado de saúde indica um potencial déficit fisiológico que pode afetar o sistema imunológico e comportamento, o que foi corroborado pelo maior escore tumoral de fibropapilomatose e carga de ectoparasitas nesses animais”.