Professor Salomão Hagi, da UFPA, aponta pontos em comum da luta no ES e demais estados
A visão “urbanocêntrica” dos gestores públicos explica porque cerca de dois terços das escolas fechadas no Brasil desde o ano 2000 sejam do campo. A afirmação é do professor Salomão Hagi, da Universidade Federal do Pará (UFPA), ao comentar os pontos comuns entre a luta em defesa da educação do campo travada no Espírito Santo e nos demais estados, a partir dos diálogos e debates realizados durante o Encontro Nacional da Educação do Campo, das Águas e das Florestas, concluído nesse sábado (2) em Salvador/BA.
“Nós tivemos um grupo de trabalho que discutiu especificamente a escola pública do campo, o fato dela ser multisseriada e os mecanismos de combate ao fechamento de escolas do campo. Isso porque no Brasil, nos últimos 22 anos, de 2000 a 2022, 160 mil escolas foram fechadas. E dessas, 101 mil foram fechadas nos territórios do campo, das águas e das florestas. Há uma iniciativa muito grande dos gestores públicos, especialmente municipais, de adotar política de nucleação escolar, vinculada ao transporte. E isso se dá geralmente pela sua compreensão ‘urbanocêntrica’ de mundo, pela relação custo-benefício, de achar que manter as pequenas escolas nas pequenas comunidades é gasto e não investimento”, explica o acadêmico, que também é coordenador do Fórum Paraense de Educação do Campo e coordenador da Frente em Defesa das Escolas do Campo do Fonec.
“Infelizmente, as escolas multisseriadas acabam sendo o ‘bode expiatório’ dessa situação. Elas são abandonadas pelas gestões educacionais e se tornam muito precárias por conta disso: em termos de infraestrutura, de metodologia, materiais pedagógicos, os professores também nem sempre são qualificados, a maioria é contratada, rotativo…então isso tudo favorece com que o gestor apresente como plano de superação dessa situação de precarização, o fechamento dessas pequenas escolas e a reunião delas para constituição de uma escola nucleada. Na cabeça urbanocêntrica dos gestores, isso representa a modernização. Eles não se dão conta, ou então se dão conta sim muitas vezes, que ao fechar as escolas das pequenas comunidades, acabam decretando a sentença de extinção das comunidades. A escola é vida da comunidade, se ela permanece, a comunidade permanece; se ela é extinta, aos poucos isso vai extinguindo também a comunidade”, expõe Salomão.
O encontro foi realizado pelo Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), em parceria com a Articulação Nacional de Estudantes e Licenciados em Educação do Campo (Aneledoc), a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), o Fórum Estadual de Educação do Campo da Bahia, o Governo da Bahia, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar e o Ministério da Educação.
A proposta foi promover um “reencontro coletivo para a retomada dos espaços de participação social envolvendo o debate e reflexão em torno das políticas, programas e ações em Educação do Campo fomentados pelo Governo Federal e desenvolvidos pelas universidades, institutos federais, fóruns de educação do campo e movimentos sociais, perpassado por uma mística de celebração dos 25 anos da Educação do Campo, das Águas e das Florestas no Brasil”.
‘Decidimos não morrer’
A delegação capixaba levou representantes do Comitê Estadual de Educação do Campo do Espírito Santo (Comeces) e educadores e estudantes vinculados à Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e movimentos sociais, como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Pequenos Agricultores (MPA).
Para a professora Silvanete Pereira dos Santos, do curso Ledoc da Ufes, o objetivo foi atingido. “O encontro foi muito significativo para o movimento de educação do campo, pois aglutinou pessoas de diferentes experiências desde a educação básica à educação superior, bem como experiências de educação não escolar. Neste sentido, se constituiu como espaço de diálogos e reflexões teóricas e práticas desenvolvidas por movimentos sociais, sindicais, universidades e escolas de educação básica de todas as regiões do Brasil. Tivemos oportunidade de apontarmos os avanços e os desafios que precisamos enfrentar para construirmos uma política de campo, de campesinato e de escola do campo”.
O fortalecimento da luta empreendida por educadores e estudantes da sociedade civil foi um ponto alto, na avaliação de Luciene da Silva Rodrigues Erculino, integrante do MPA, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Água Doce do Norte e membro da coordenação do Comeces e da Comissão de Mulheres da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Espírito Santo (Fetaes).
“O encontro foi fundamental para fortalecer a luta que nós estamos construindo aqui no Espírito Santo. Vimos como o povo do campo está sendo violentado com o fechamento de escolas. Não é exclusividade do Espírito Santo, está acontecendo em todo canto do país. As escolas do campo só começaram a ser abertas pela luta do nosso povo. E o fechamento de escolas começou a acontecer desde que abriram a primeira escola do campo. Mas no encontro nós afirmamos que ‘eles planejaram nos matar e nós decidimos não morrer'”, relata.
Vitórias importantes foram celebradas durante o encontro, como a inclusão formal da Pedagogia da Alternância na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), mas também pontuou que, apesar das conquistas, “nada tem conseguido inibir a ação do Estado para fechar as escolas”, conta Luciene. “A impressão que eu tenho é que se trata de uma terra sem lei, a gente argumenta com os decretos e leis já publicadas, mas as comunidades continuam sendo muito desrespeitadas. Aqui no Espírito Santo, nesse momento a culpa maior é do TAG [Termo de Ajustamento de Gestão] do Tribunal de Contas”.
Racismo educacional
Sobre as estratégias de combate ao fechamento de escolas, o professor Salomão Hagi cita campanhas nacionais como a do MST que ressaltam que “fechar escola é crime”; a da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), de que “Raízes se formam no campo”; e da Articulação Sul, sobre “escola é vida na comunidade”.
“São expressões e manifestações que vão na contramão dos argumentos dos gestores, de que a aplicação da nucleação produz a modernização da escola, ou que o número de crianças está diminuindo nas comunidades, por isso as escolas estão sendo fechadas, ou das resoluções internas das secretarias exigindo que, para formação de uma turma, para permanência de uma escola, para lotação de um professor, tenha um mínimo de 12 a 15 estudantes. No Brasil inteiro não existe uma legislação educacional que estabeleça um número mínimo para que uma turma uma ou uma escola possa funcionar em uma comunidade do campo, indígena e quilombola”, afirma.
Há ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que estabelece as normas para fechamento de uma escola do campo, indígena ou quilombola, complementa Salomão. Entre elas, a de que a comunidade precisa ser ouvida e o conselho municipal estadual de Educação tem que apresentar um laudo mostrando os impactos do fechamento da escola na vida das crianças e da comunidade.
“Essas escolas todas são fechadas de forma arbitrária, justamente porque os gestores preferem implementar a educação nos territórios rurais da mesma forma como é implementado nos territórios urbanos: escolas de médio e grande porte, com turmas seriadas e corpo docente ampliado. E isso tem causado grandes problemas, grandes danos para os povos tradicionais, camponeses, indígenas, ribeirinhos”, denuncia.
Salomão Hagi aponta ainda como o racismo estrutura essa política de precarização e fechamento de escolas não urbanas. “Esses povos se territorializam de acordo com a necessidade de produção da sua existência. Eles se territorializam próximo ao rio, ou na floresta onde tem os castanhais, em locais quase sempre muito distantes das sedes dos municípios. A gente tem que ter muito cuidado com essas expressões: ‘escolas isoladas’, ‘escolas de difícil acesso’, ‘escolas remotas’…porque são expressões racistas. Os gestores então alegam: ‘são escolas remotas, de difícil acesso, isoladas, então vamos trabalhar com educação à distância, vamos trabalhar de uma forma precarizada ou então a gente fecha a escola e passa a nuclear o processo educativo'”.
Apesar da ofensiva longa e acirrada contra os territórios tradicionais, o coordenador do Fonec vê o momento atual e o futuro com otimismo. “Acho que nesses últimos tempos, o movimento tem denunciado bastante, tem pedido apoio do Ministério Público, tem conseguido reabrir algumas escolas que foram fechadas. Muitos pesquisadores estão investigando sobre a realidade do fechamento de escolas. Muitos estados têm protagonizado experiências próprias de combate ao fechamento de escolas. É importante acompanhar todo esse processo. O próprio Fórum Nacional de Educação do Campo criou uma Frente em Defesa das escolas do Campo e o encontro nacional criou Grupo de Trabalho de fortalecimento das escolas do campo, com aquele entendimento de que ‘escola é vida na comunidade’, de que se a gente consegue fazer com que a escola permaneça na comunidade, a comunidade permanece viva, firme”.
Natureza, a última fronteira
E manter as comunidades rurais vivas é fundamental para a vida de toda a humanidade, ressalta Luciene Erculino. “O nosso conhecimento tradicional, a nossa cultura camponesa, fez a gente sobreviver até hoje. Mas a gente sempre foi muito explorado, porque faltava o conhecimento letrado, do mundo ‘lá fora”.
Ler o mundo urbano permite que ele não “engula” a vida camponesa. “Eu mesma, morava numa grota, literalmente. A informação que chegava lá era a que o pai do patrão do meu pai levava. Não tinha rádio, jornal, nada. Então o que ele falava, para a gente, era ‘a’ verdade. As pessoas não sabiam porque as coisas aconteciam, que aquele patrão se quisesse manipular meu pai, era fácil. Hoje, os bancos da escola, da universidade, nos permitem ter acesso a esse conhecimento letrado em os protege. E isso em nos tirar da nossa cultura, ao contrário, fortalecendo a nossa cultura, a nossa realidade”, explica.
Defender a vida de quem defende a natureza, afirma, é essencial. “Estamos numa guerra com desmanche da vida e da cultura camponesa. As pessoas estão morrendo, quando não fisicamente, culturalmente. Por outro lado, o colapso ambiental tem afetado toda a sociedade. Se a gente compreender que a natureza é a última fronteira, entendem que se acabarem com a gente, vai ser ruim para todo mundo. Defender a permanência dos povos do campo, das águas e das florestas nessa fronteira, essa fronteira que a gente cuida e guarda, é defender a vida de todos. Sem a natureza e os defensores da natureza, a humanidade não vai suportar. A natureza é a última fronteira de sobrevivência dos povos, todos os povos, toda a humanidade”.