Carta enviada aos governos do Estado e federal elenca direitos violados e exige titulação do território
“Que a Polícia Militar não atue dentro das comunidades como se estivessem lidando com criminosos, somos donos dessas terras!” O grito de socorro é um dos pontos cruciais elencados na Carta das Mulheres Quilombolas do Território do Sapê do Norte (acesse na íntegra abaixo), elaborada durante encontro realizado na comunidade de São Domingos, em Conceição da Barra. O evento reuniu 130 mulheres, oriundas de 17 das 32 comunidades quilombolas que formam o território do Sapê do Norte, que se estende também por São Mateus, no norte do Estado, além da comunidade de Santa Luzia, em Montanha, no extremo norte.
A partir dessa premissa, e da necessidade de regularizar o território tradicional, as mulheres descrevem as diversas violações de direitos que sofrem e exigem providências para cessá-las, por meio da titulação e, em paralelo, da adequação das políticas públicas existentes, mas que não são implementadas justamente por falta da titulação.
“As políticas lançadas apresentam muitas burocracias e, além disso, há sempre necessidade de um documento de titulação, como, por exemplo, o Pronaf quilombola. De que forma acessar essa linha sem titulação da terra?”, questionam as signatárias.
Elas se identificam com dezenas de denominações profissionais, culturais, tradicionais e afetuosas: “trabalhadoras, agricultoras, extrativistas, pescadoras, beijueiras, benzedeiras, rezadeiras, mães de santo, jongueiras, griôs, cozinheiras, senhoras do dendê, artesãs, artistas, erveiras, curandeiras, domésticas, estudantes, universitárias de graduação e pós-graduação, professoras, pedagogas, doutoras, assistentes sociais, advogadas, enfermeiras, escritoras, cantoras, produtoras, servidoras públicas, conselheiras municipais e estadual, defensoras dos direitos humanos, guardiãs da natureza e dos saberes tradicionais, lideranças comunitárias e das organizações representativas, guerreiras, carinhosas, choronas, mães, avós, jovens e crianças, nos juntamos para fortalecer a nossa luta”.
Entidades parceiras também se fazem presentes: Fórum de Mulheres do Espírito Santo (Fomes), Conexão Quilombola, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Associação de Desenvolvimento Agrícola Interestadual (ADAI Brasil), Casa da Barra, Coletivo Constância de Angola, Movimento Negro Unificado (MNU), além de órgãos públicos federais e estaduais: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra- ES), Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA- ES) e Secretarias Estaduais de Mulheres (SESM) e de Direitos Humanos (SEDH); e as deputadas estaduais Iriny Lopes (PT) e Camila Valadão (Psol).
Antes de efetivamente elencar as denúncias de violações de direitos e reivindicar as pautas mais urgentes, a carta faz uma menção à importância vital de cultivar “nossos saberes e conhecimentos tradicionais transmitidos das nossas antepassadas, sobretudo oralmente”. A identidade quilombola, afirmam as mulheres, está muito caracterizada pela “relação atenta com a natureza”, que se realiza por meio de práticas ancestrais, como “o cuidado da nossa saúde com ervas medicinais, com alimentação saudável da nossa agricultura e com as rezas das benzedeiras”.
Saúde, natureza a espiritualidade que formam um todo coeso e sagrado. “Respeitar a nossa devoção de fé é fundamental para honrarmos a nossa ancestralidade. Não iremos nos calar com intolerância religiosa!”, sublinham.
Retomadas
O registro dos pontos de pauta começa com o repúdio ao PL 166/2024, que tramita na Assembleia Legislativa e impõe uma série de restrições de acesso a políticas públicas estaduais e federais a pessoas que sejam consideradas “invasoras” de imóveis urbanos ou rurais. Conforme aprovada, a lei criminaliza as ocupações de terras legítimas feitas pelas comunidades quilombolas contra a Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria), que no Sapê recebem o nome de “retomadas” e são “a única forma das mulheres proteger o meio ambiente, acessar água e trabalhar na agricultura e com o extrativismo, sendo assim garantir o sustento de suas famílias”.
Violência contra a mulher
Outro ponto crucial da carta são as diversas formas de violências contra as mulheres negras que, afirma o documento, são um “instrumento de dominação” e estão sendo naturalizadas e invisibilizadas. “É preciso haver este reconhecimento!”, reivindicam, oferecendo os caminhos para a solução desse problema cotidiano: “A proteção, a solidariedade e o cuidado são fundamentais, mas também a exigibilidade de políticas públicas de prevenção (inexistentes), de atendimento (fragilizadas e inapropriadas) e de contenção/punição (precárias e em retrocesso)”.
Racismo institucional
A negativa generalizada de políticas públicas básicas no território – água, saúde, educação, estradas, transporte público, comunicação, segurança pública, financiamento para produção, respeito à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – é denunciada pelas mulheres como sintoma de racismo institucional.
“Por que a energia elétrica é negada nos quilombos? Por que não se fala de saúde quilombola? Por que não temos agente de saúde nas maiorias das comunidades? Porque não temos escolas quilombolas? Por que as nossas estradas são fechadas sem consulta? E, além disso, por que não há manutenção nas estradas que o transporte escolar passa? Nós, mulheres quilombolas, queremos ouvir a resposta do governo e, além disso, queremos a resposta na prática, porque isso é violação de direitos. Queremos posto de saúde nas comunidades com atendimentos médicos, queremos agentes de saúde nas comunidades e das comunidades, queremos ter acesso urgente a energia elétrica, para as casas e agricultura, queremos nossa escola quilombola, queremos manutenção das estradas e, por fim, queremos nossas estradas livre de fechamento, por respeito, liberdade e igualdade!”.
Educação quilombola
A não implementação da Lei 10.639/2003 é descrita com gravidade: “precariedade das poucas escolas nas comunidades, inadequação dos currículos e maus tratos das secretarias municipais, inclusive colocando em risco as crianças que passam até 12 horas nos transportes, são exemplos do descaso do poder público, que acaba transferindo sua responsabilidade para as grandes empresas, que se aproveitam para fazer propaganda”.
Agronegócio
O agronegócio de monocultivos de eucalipto são citados como razão para diversas violações. A atividade se instalou na região a partir da década de 1960 com a Aracruz Florestal Aracruz Celulose (ex-Fibria, atual Suzano) e continuou se expandindo sobre todo o Sapê e outras áreas do norte do Espírito Santo, chegando hoje também na região serrana e do sul do Estado, formando os chamados “desertos verdes”. No território quilombola, o avanço dos monocultivos – o uso do solo que mais cresce no Espírito Santo historicamente, mais que o café – é causa fundamental da escassez de água e das perseguições sofridas pelas lideranças e demais moradores.
“Nos tira o direito de ir e vir, vigilantes particulares truculentos, e drones fazendo vigia em cima de nossas propriedades o tempo todo, e, além disso, a perseguição de vigilantes seguindo mulheres e jovens quando vai exercer suas atividades de extrativismos com a retirada de dendê e cipó, garantida pela lei e a única forma das mulheres garantir a geração de renda na comunidade”.
Violência policial
A Polícia Militar, complementam, seguidamente atua de forma semelhante às empresas de segurança patrimonial da Suzano, contra lideranças, que são perseguidas e criminalizadas, e moradores em geral. “Que a Polícia Militar não atue dentro das comunidades como se estivessem lidando com criminosos, somos donos dessas terras! É necessário um diálogo aberto com a polícia do Estado para termos o mínimo de respeito dentro do nosso território, o nosso processo é de luta, legalmente reconhecido por lei, somos quilombolas, garantimos nosso direito no Decreto 4887/2003. É necessário e urgente que o programa de proteção tenha uma equipe no Estado, e que a Secretária de Direitos Humanos dê a devida atenção para os quilombolas ameaçados”.
Água
“Reforçamos a nossa urgência da garantia água potável principalmente para uso doméstico, mais também para os plantios, que desde a chegada do monocultivo [de eucalipto] na região, os córregos secaram e os poucos que têm água se encontram envenenados pelo alto uso de agrotóxicos. Nossas comunidades usam água de cisternas, que com tempo de chuva vira barrenta, e com tempo seco ficamos sem água”, descrevem.
Por isso, as mulheres reafirmam, na carta, a necessidade de que o Estado obrigue a empresa a cumprir o pedido de recuo dos eucaliptais instalados dentro dos territórios das comunidades e de reparação dos impactos já provocados.
“Solicitamos com urgência, providências e reparação dos impactos ambientais nas comunidades quilombolas do Sapê do Norte. Córregos e rios que sobraram estão poluídos, a maioria soterrados. Recentemente, com as últimas chuvas, voltaram a brotar e as empresas tentam esgotar e soterrar, e novamente, plantios de eucaliptos e cana-de-açúcar dentro de lagoa e nascente, e as comunidades passando necessidade por falta de água. Exigimos o recuo dos monocultivos das grandes empresas e fazendeiros de nossas comunidades e nascentes. Entendemos que os impactos ambientais afetam diretamente as mulheres do território. Dependemos da natureza para viver, somos povo do mato, e sem a preservação do nosso meio ambiente, estaremos extintos em nosso território. Meio Ambiente é nossa vida!”.
Grilagem
A carta lembra ainda da Ação Civil Pública n.º 0000693-61.2013.4.02.5003/ES, impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) e que obteve uma primeira decisão judicial favorável às comunidades quilombolas em outubro de 2021, quando o juiz determinou a suspensão dos títulos de propriedade fornecidos pelo Governo do Estado à então Fibria, por entender que a documentação apresentada pela empresa está eivada de fraudes, conforme foi demonstrado na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Aracruz, realizada pela Assembleia Legislativa em 2022, em que os deputados investigaram denúncias de grilagem de terra pela papeleira, dentro do território quilombola do Sapê do Norte.
Associada à sentença judicial, há ainda a Lei Estadual Ordinária nº 5.623, acrescentam as signatárias, que garante o processo de regularização do território por parte do governo, conforme consta no trecho destacado na carta: “Fica reconhecida a propriedade definitiva das terras devolutas ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos no território do Espírito Santo, obedecido ao disposto nas Leis n.º: 4.383 e 4.758”.
A morosidade dos processos em âmbito estadual e federal, sublinham as mulheres, “a cada dia aumenta os conflitos dentro do território, e além de dificultar o acesso às políticas públicas municipais, estaduais e federais. Queremos nosso território titulado!”.
OIT 169
Além do agronegócio de celulose, empreendimentos de petróleo e mineração também agridem o território quilombola e precisam respeitar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para efetivamente regularizarem suas atividades.
“Denunciamos a Suzano, os fazendeiros e todos os grandes empreendimentos de monocultura, petróleo, e mineração, por tirar o nosso acesso à água em quantidade e qualidade, por fechar as estradas comprometendo nosso direito de ir e vir, por ameaçar e perseguir nosso povo, sobretudo em nossas retomadas, por ameaçar, intimidar, e invadir o nosso território. E também denunciamos o Estado por não cumprir com seu papel de fiscalização e permitir que todos os direitos quilombolas sejam violados, por não cobrar e nem garantir a consulta prévia, livre e informada, conforme Convenção 169 da OIT, por contribuir e permitir e participar legalizando com as empresas com práticas de racismo ambiental, patrimonial, estrutural e institucional”.
CAR Quilombola
A respeito de políticas que apoiem diretamente a economia dentro do território, as mulheres reivindicam que o Estado cumpra com o que estabelece a Lei Federal nº 12.651/12 (Novo Código Florestal) no tocante às especificações com que deve ser conduzido o Cadastro Ambiental Rural (CAR) dentro de comunidades tradicionais, como as quilombolas. Orientação reforçada pelo Observatório do Código Florestal, que pede aos estados que deem prioridade ao CAR dentro de territórios tradicionais.
“Solicitamos que o órgão do governo estadual (IDAF) e o órgão federal (Incra) dialoguem sobre a abertura no sistema, de submissão de dados do CAR Quilombola (…) Em especial, nas áreas coletivas, apontando violações de direitos garantidos por normas nacionais e internacionais, uma vez que não estabelece o necessário tratamento diferenciado. Precisamos ser gestores de nosso território!”.
Financiamento
Condições específicas de financiamento para a agricultura produzida pelas mulheres quilombolas é outro dispositivo legal que precisa ser implementado, afirma a carta, considerando que, na maioria das famílias do território, são as mulheres que garantem o sustento da casa, principalmente por meio da produção agrícola para consumo próprio e comercialização.
“Precisamos de equipamentos agrícolas, despolpadoras, casas de farinhas, etc. Precisamos investir nas produções quilombola, na qualificação e aumento de quantidades de produtos produzidos no território, garantir a soberania alimentar, autonomia e igualdade social.
Solicitamos que as políticas públicas apresentadas sejam acessíveis para nosso povo, que haja dialogo, formação com as comunidades e, principalmente, com os executores dessas, como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, para zerar essas políticas como Pronaf e Minha Casa Minha Vida. Tendo em vista que nosso território não há titulação, as políticas lançadas pelo governo federal são acessíveis para as comunidades não tituladas”.
Três vezes Palácio Anchieta
A carta lembra ainda que essas pautas são de conhecimento do governador Renato Casagrande (PSB) desde 2022, tendo sido entregues pela primeira vez ao gestor por ocasião das atividades do 8 de Março daquele ano. “Amanhecemos na porta do Palácio Anchieta para reivindicar uma audiência com o governo do estado do Espírito Santo, e fomos atendidas e apresentadas nossas demandas”.
No ano seguinte, prosseguem, “em março de 2023, retornamos ao Palácio com a mesma pauta, reivindicamos urgência no atendimento e, para além, solicitamos que tenha recursos orçamentários para que o Estado aplique as políticas públicas nas comunidades quilombolas”.
Agora, pela terceira vez consecutiva, as pautas de denúncias são elencadas, sendo reescritas em uma atividade dentro do Sapê, mas entregue ao Palácio Anchieta e outros órgãos públicos.
“Reforçamos nossas reivindicações e cobraremos ao Estado Brasileiro. Queremos nosso território titulado! Queremos nosso direito garantido!”.