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Transição do SNI para Abin

Desmonte do SNI pelo novo regime democrático não seria trivial

O Serviço Nacional de Informações (SNI), desde o início do processo de redemocratização no Brasil, depois do período da ditadura militar, que tinha durado 21 anos, e durante os dias em que ocorreu a posse do presidente civil José Sarney, produziu relatórios sigilosos que buscavam informações sobre a atuação de agências de inteligência em democracias e também nos regimes totalitários, diferenciando o que numa democracia poderia envolver ações proibitivas, tais como métodos que levassem a violações do direito individual e práticas de atos abusivos.

Em regimes totalitários, por sua vez, tais agências podem atuar com desembaraço e sem impedimentos legais, pois a opinião pública está subjugada e os partidos políticos de oposição proibidos ou extintos. Tais constatações envolvem documentos inéditos que foram encontrados no acervo do SNI pela Agência Pública, que tem atualmente a custódia no Arquivo Nacional.

Tais relatórios revelam como o SNI tentava manter intactos seus mecanismos de arapongagem, mesmo após a saída do último presidente militar, general-ditador, da Presidência da República. O SNI, que foi criado imediatamente após o golpe de Estado de 1964, atuou como o centro do complexo sistema de repressão que se estruturou com os militares no poder.

Instituído pela Lei n°4.341, de 13 de junho de 1964, tinha como objetivo oficial atuar como uma assessoria da presidência da República, atuando nos movimentos de informação e contra-informação, o que significou que o SNI se vinculou à repressão política do regime ditatorial, isto é, participou de operações nas ruas e sessões de tortura.

O SNI foi idealizado pelo general Golbery do Couto e Silva, que foi um dos principais articuladores do golpe de 1964, e que foi chefe do órgão desde o início do regime e que depois foi sucedido por militares que chegariam à presidência da República, tais como Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo.

Durante o regime, por sua vez, foi conferido grande poder ao SNI, o que favoreceu a sua grande expansão, criando tentáculos pelo Estado, incluindo ministérios civis, empresas públicas, universidades, além de sua articulação com outros serviços de informações, como do Conselho de Segurança Nacional, as secretarias de segurança estaduais, além dos órgãos das três Forças Armadas.

A capilaridade e a autonomia da arapongagem do SNI resultaram deste poder instituído pelo regime militar para o desembaraço de suas ações, e o monitoramento de ameaças à segurança nacional se tornou uma das prioridades do regime militar, incluindo a chamada Doutrina de Segurança Nacional.

Esta doutrina refletia o padrão paranoide e autoritário de manutenção da ditadura militar, representando o substrato ideológico deste estado de espírito perturbador do regime e que favoreceu a espionagem em todos os setores da sociedade civil.

Com o fim do regime, ficou a questão do que fazer com o SNI, em que Golbery soltou uma afirmação que ficou registrada na História do Brasil : “Criei um monstro”. Tal afirmação de Golbery refletia que o desmonte do SNI pelo novo regime democrático não seria trivial.

Nos relatórios agora revelados do SNI, a preocupação principal do órgão passou a ser com a própria imagem, isto incluindo as críticas feitas na imprensa nacional em que muitos se perguntavam pelo destino deste órgão criado pela repressão política do então acabado regime militar, uma vez que sua criação se deu sob este regime em que a censura perdurou até 1977, período em que o SNI ficou imune às críticas da opinião pública.

As iniciativas para a extinção do SNI, através de projetos de lei, por exemplo, ações de reconhecimento da violência praticada na ditadura e reformas institucionais, preocupavam também o órgão, sendo monitoradas, ficando evidente que o SNI deveria passar por adequações para atuar no regime democrático, o que contrariava seus agentes, levantando mais uma vez que tais iniciativas eram feitas por “subversivos”.

Reportagens da Veja e do Estadão foram listadas em dezembro de 1987, por exemplo, pelo SNI, e viraram mais uma fonte de preocupação do órgão com a própria imagem, uma vez que foram a público a atuação do SNI durante a década de 1970, como um aparelho de repressão política da ditadura. Portanto, ao invés de se adequar ao novo regime democrático, as ações do SNI buscavam salvaguardar a própria imagem do órgão.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC), o SNI procurou parlamentares que integravam a ANC para apresentar propostas legislativas para serem incluídas na nova Constituição, sendo que muitos desses parlamentares foram espionados pelo SNI durante a Assembleia Nacional Constituinte.

Por sua vez, Ricardo Fiúza, parlamentar próximo dos militares, ficou responsável pelo colegiado que discutiria os temas de inteligência e de defesa, já na fase das comissões temáticas da ANC. Portanto, nada que contrariasse o SNI foi aprovado por tal comissão.

No colegiado em que seriam discutidos os direitos fundamentais, tais como a Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher, em debates que envolveriam artigos para garantir os direitos à privacidade, ao sigilo de correspondência e ao habeas data (instituto que prevê que todo cidadão pode requisitar informações sobre si aos entes públicos do Estado), foram registradas tentativas de interferência do SNI.

O SNI atuou, por exemplo, para retirar a salvaguarda de autorização judicial sobre o sigilo de correspondência e das comunicações em geral, isto para que o SNI continuasse interceptando comunicações privadas. Depois de sugerir a exclusão do artigo que previa o habeas data, o SNI passou a atuar para a implementação de uma estratégia de lobby para a defesa de seus interesses.

Já nos trabalhos da Comissão de Sistematização do ANC, que visava apresentar o primeiro anteprojeto de texto para a nova Carta Magna, o SNI detalhou o lobby organizado pelo órgão em novo relatório, promovendo articulações com diversos senadores e deputados federais, na defesa de seus interesses.

E seguiu o trabalho do SNI de tentar alterar artigos da nova Carta Magna, se aliando ao Centrão e às Forças Armadas, com a esquerda como principal adversário de seus interesses. E o SNI também seguiu atuando na etapa derradeira da Constituinte, que era a fase de Plenário, quando o SNI buscou, até os últimos instantes, eliminar do texto constitucional salvaguardas para a instituição de um novo Estado de Direito, agora sob regime democrático.

O SNI sobreviveu, contudo, à mudança de regime, apesar da Carta Magna ter trazido garantias que o órgão tentou eliminar. Portanto, a transição política para um regime de poder civil e democrático foi insuficiente para promover a extinção do SNI, o que só veio a ocorrer em 1990, nos primeiros dias do governo Collor.

A criação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por sua vez, não foi marcada por um debate profundo do tema, pois, até a sua criação em 1999, consistiu numa sequência em que o governo Fernando Henrique Cardoso tentou estabelecer a nova agência por Medida Provisória em 1995, e diante de críticas do Congresso, apresentou um projeto de lei em 1997, com poucos debates realizados até a sua redação final.

A falta de um aprofundamento do debate teve como resultado algo mal definido, de escopo amplo sobre do que se trata a atividade de inteligência, dando azo para distorções de interpretação, seguindo a Abin ainda sob certa influência dos termos definidos na Doutrina de Segurança Nacional da ditadura, em que ainda temos, por exemplo, uma percepção do indivíduo, do cidadão, como inimigo, e que é passível de ter seus direitos violados.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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