Vigilantes foram denunciados por má conduta. Roubos de objetos são tratados com mais rigor, avalia pesquisadora
O corpo de uma mulher negra vale menos do que uma bicicleta dentro do campus universitário? A pergunta é parte da análise da gravidade do caso de agressão e ameaça sofrida por uma trabalhadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) dentro do campus de Goiabeiras. Depois do Boletim de Ocorrência e exame de corpo de delito realizados e de toda a rede de apoio que tem lhe acolhido e protegido nos últimos dias, foi feito, nessa quarta-feira (8), um pedido de medida protetiva de urgência (MPU) e a denúncia dos vigilantes que flagraram o crime, por má conduta. A Reitoria da Ufes também foi acionada, para que continue a acompanhar e prestar apoio à trabalhadora, e a Defensoria Pública da União (DPU), para que passe a acompanhar, no Poder Judiciário, o deferimento da MPU.
O ofício foi encaminhado ao reitor, Eustáquio de Castro, e ao defensor federal Antonio Ernesto de Fonseca e Oliveira, pelo programa de extensão e pesquisa da Ufes Fordan: cultura no enfrentamento às violências, e traz trechos do boletim de ocorrência e um relato das medidas que foram tomadas.
No BO, consta que o crime ocorreu no dia 27 de abril, às 14h30, no encerramento de uma atividade do projeto Sábado de Lazer, realizado pelo Centro de Educação Física e Desporto (CEFD), que visa integrar a universidade com a comunidade externa, quando a trabalhadora Adenilza Matos pediu para uma mulher, Daiane Oliveira Rocha, se retirasse da tirolesa, pois a atividade já havia acabado.
“Daiane desceu agressiva e pegou um pedaço de madeira e a agrediu dando paulada no rosto, no braço direito e na perna direita dela, causando hematomas nos locais onde foi atingida”, descreve o documento, acrescentando que as cerca de cinco crianças que estavam com ela também passaram a lhe atirar pedras, bem como outras quatro pessoas que tentaram ajudar a trabalhadora e que Daiana “cuspiu em seu rosto e a chamou de macaca”. A agressora, prossegue o BO, “tem 21 anos de idade, é branca e estava com cabelos pintados de loiro”.
Na denúncia feita à Ouvidoria do governo federal, o Fordan aponta que os vigilantes que flagraram o crime apenas anotaram o nome e sobrenome da agressora, não registraram números de documentos dela e a deixaram ir embora, sem qualquer acolhimento à trabalhadora agredida e ameaçada.
“Eles deveriam ter chamado a polícia na hora para apurar o crime que aconteceu. Porque, se no lugar do corpo da pessoa preta, você tem uma bicicleta, por exemplo, esse teria sido o comportamento deles? Teriam apenas anotado o nome da infratora e deixado ela ir? Um objeto vale mais do que o corpo de uma pessoa?”, questiona a professora Rosely Silva Pires, coordenadora-geral do Fordan.
Sobre o acolhimento feito até agora, Rosely explica que somente três dias depois do ocorrido é que Adenilza foi acolhida, quando ela encontrou com a trabalhadora e lhe questionou o motivo das marcas no seu corpo. Conseguiu então, com apoio da Reitoria e da gestão do Centro de Educação Física, levar a vítima para a delegacia e para o Departamento Médico Legal (DML) para o exame de corpo de delito.
Para dar início à elaboração do pedido de MPU, complementa, “foi necessário acionar a rede Fordan para encontrar os dados dos documentos da agressora”. A petição foi feita por uma advogada voluntária do Fordan, Layla dos Santos, junto à 2ª Vara Criminal de Vitória, sob o número 5018250 – 85 2024.8.08.0024.
Em nota, na ocasião, o Fordan ressaltou que a vítima é “uma mulher preta, com 30 anos de Ufes, sempre realizou suas atividades com responsabilidade e respeito a quem quer que seja” e que o “crime precisa ser tratado como crime e os agressores precisam ser punidos”.
Assim que o caso foi tornado público, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e o Diretório Acadêmico (DA) “26 de Junho” também se manifestaram, por meio de uma nota conjunta, “repúdio aos crimes cometidos contra a servidora”, citando “injúria racial, agressão e ameaça de morte”.
A Administração Central da Ufes também publicou uma nota, manifestando “indignação e repúdio às agressões” e expondo as medidas que já haviam sido tomadas, em conjunto com o Fordan. Informou também sobre “ações de orientação junto aos servidores que atuam na segurança da Instituição, a fim de que adotem os encaminhamentos corretos e necessários em casos de ocorrência de crimes como injúria racial, racismo e outros resultantes de discriminação ou preconceito, seja ele de raça, cor, etnia, gênero, religião ou procedência nacional”. Afirmou, ainda, que “todo e qualquer ato de racismo ocorrido dentro de seus campi será apurado, a fim de que sejam adotadas as providências previstas em lei, sempre que necessário”.
Rede de apoio
Em meio aos procedimentos legais e manifestações públicas das instituições, foi formado uma rede apoio multidisciplinar para a trabalhadora. “A agressora ameaçou voltar para matá-la. Ao buscarmos as informações sobre a agressora, descobrimos que ela tem passagem pela polícia por outras violências cometidas por ela e contra ela. A rede de apoio, para Adenilza, foi criada com a função de que outras pessoas possam acionar a delegacia e gravar possíveis novas agressões, mas, o principal objetivo, é proporcionar a Adenilza o sentimento de que o ambiente de trabalho é um lugar seguro para ela”, explica o documento, assinado também pelos advogados voluntários Arthur Bastos Rodrigues e Cristiana Ribeiro da Silva, do núcleo jurídico do Fordan.
“Adenilza ficou muito abalada emocionalmente. Além da psicanalista do Fordan, que está atendendo a mesma, foi necessário a rede de apoio para fortalecê-la com monitoramento via celular e presencialmente. A questão da violência não está somente no momento da agressão, mas também nos traumas que essa agressão gera, é preciso transformar a experiência em acolhimento e carinho para reduzir os traumas”, explica.
Passadas quase duas semanas, Adenilza conta ao Século Diário que ainda se sente insegura e que sente as dores físicas e emocionais do ocorrido. “Vou levando”, diz, quando perguntada como se sente. “O rosto ainda está um pouco inchado, é difícil esquecer. Não é nem pela agressão física, mais pelas palavras”, diz. “Mas vou tocando a vida para frente”.
A professora Rosely ressalta que, infelizmente, a agressão e ameaça a Adenilza não são situações isoladas dentro dos campi, e que a impunidade tem sido recorrente. Por isso, afirma, é urgente a criação de um protocolo robusto que oriente a toda a comunidade universitária sobre como agir nessas situações, para colocar fim às impunidades e reduzir as violências.
Confira a entrevista:
Como Adenilza tem sido acompanhada neste momento, quase duas semanas após os crimes?
Produzimos uma rede de apoio para ela com as pessoas que gostam dela e que, desde que souberam do ocorrido, enviaram mensagens, perguntando o que podia ser feito para ajudar. Essas pessoas têm abraçado a Adenilza e ficam por perto para protegê-la caso a agressora volte para cumprir o que ela ameaçou.
Esse movimento é importante para que a pessoa que sofreu a agressão não comece a ter outras agressões advindas dessa, que são problemas emocionais. Muitas pessoas não sabem, mas a violência não cessa no momento em que o agressor parou de agredir. Ela continua a partir dos problemas emocionais que advêm da agressão. Quando a pessoa agredida é acolhida e assistida e tem seu processo de denúncia encaminhado, todo esse movimento faz com que ela transforme esse momento de dor e sofrimento, em um momento de acolhimento. E isso funciona para o emocional como uma possibilidade de evitar traumas posteriores.
O Fordan conseguiu um primeiro atendimento com psicanalista na semana passada e agora a gente vai permanecer com esse atendimento até ela estar mais estabilizada. Não é um tratamento psicológico, é um atendimento de estabilização, que é o que o Fordan consegue fazer diante do número imenso de pessoas que pedem socorro.
Por que foi necessário solicitar a medida protetiva?
Porque a agressora fez uma ameaça de morte: ‘eu vou voltar para te matar’. E ao rastrearmos os dados dela, porque os vigilantes não pegaram os dados da agressora, foi necessário fazer um levantamento e encontrar essa mulher, vimos que ela tem passagem pela política. Adenilza está em vulnerabilidade.
Qual foi a denúncia feita contra os agentes de segurança?
A denúncia tem como objetivo notificar a forma inadequada como eles procederam diante do crime acontecido dentro da universidade. Uma vez que foram chamados pela vítima, eles deveriam ter descrito todo o processo de sofrimento que a vítima estava vivenciando. Descrever que ela estava com o rosto inchado, que os braços e pernas estavam com feridas. Era obrigação deles descrever. Outro erro gravíssimo foi não terem pegado os documentos da agressora. Da Adenilza tem tudo, mas da pessoa que agrediu, que não era da universidade, muito mais difícil de ser encontrada, só tinha o nome completo. E ainda por cima tinha uma descrição remetendo a agressora como sendo a vítima, dizendo que ela tinha tido um atendimento ruim pela Adenilza, que foi indelicada com as palavras. A serviço de quem está a vigilância? Isso para nós foi uma violência institucional. Eles deviam ter chamado a polícia na hora para apurar o crime que aconteceu. Porque, se no lugar do corpo da pessoa preta, você tem uma bicicleta, por exemplo, esse teria sido o comportamento deles? Teriam apenas anotado o nome da infratora e deixado ela ir? Um objeto vale mais do que o corpo de uma pessoa?
Agressões e impunidades são recorrentes dentro da Ufes?
Uma pesquisa feita em 2019 mostra que as pessoas dentro da universidade não se sentem seguras. Em torno de 75% dos estudantes entrevistados responderam assim. Disseram também que se sentem insatisfeitos com a forma como as violências são tratadas. É preciso criar uma estratégia de acolhimento das vítimas e de encaminhamento das violências à Justiça e ao setor administrativo da Ufes. O que é crime precisa ser encaminhado para a Justiça e pela delegacia. Boletim de ocorrência sempre. Se houver ferida, corpo de delito. Se houver ameaçada de morte, medida protetiva. Fazer denúncia no Fala BR também, se houver comportamento inadequado dos gestores da universidade, se não fizeram acolhimento adequadamente, e encaminhar à Reitoria. Isso é necessário de ser feito para que a violência cesse. Porque uma violência que não tem um enfrentamento, necessariamente cria outras formas de se perpetuar, porque o agressor se sente protegido e a vítima se sente vulnerabilizada.
Como sanar esse problema?
Criar estratégias para que os gestores consigam entender a responsabilidade que cabe a cada um diante de uma pessoa que sofreu qualquer tipo de violência dentro da universidade. Foi estudante? Foi professor? Foi funcionário? A quem recorrer? Precisa haver uma cartilha, algum tipo de protocolo dizendo em caso de violência física e psicológica, porque para violência patrimonial já tem, a quem essa pessoa deve se dirigir para fazer sua denúncia e buscar o acolhimento. A própria Adenilza não sabia que a responsável por ela era quem estava coordenando o evento. E ela não foi acolhida. Ela sofreu a violência no sábado, 14h30, terminou tudo aquilo, foi para casa, ficou sábado, domingo, foi trabalhar segunda de manhã com aquele rosto todo cheio de hematoma, perna, braço, sem sequer ser acolhida pelas pessoas responsáveis pelo evento. Nós fomos acolher a Adenilza por acaso, só soube quando cheguei na universidade. Isso não pode acontecer jamais. Se isso acontece dentro de uma escola, uma merendeira apanhou! A coordenadora, a professora, alguém chega e socorre. Gente, a universidade é a mesma coisa. Precisa ter um espaço de cuidado. As pessoas que trabalham não podem apanhar dentro da universidade e ir para casa como se nada tivesse acontecido. Isso é um absurdo!
Que ações o Fordan tem encaminhado nesse sentido?
Não é de hoje que nós temos solicitado esse movimento de criar estratégias para acolhimento das vítimas e encaminhamento das violências. Agora nós encaminhamos para a Fapes a proposta de um núcleo de direitos humanos dentro da universidade acoplado ao Fordan. Esse núcleo, a princípio, seria para estudantes, mas dependendo das possibilidades, temos que ampliar para técnicos administrativos e docentes. Estamos com uma parceria com o DCE, que nos procurou, estamos produzindo uma pesquisa diagnóstica com o DCE e,nesse sentido, vamos buscar produzir documentos para que os estudantes, as estudantes, os técnicos administrativos, as técnicas administrativas, professoras e professores possam saber, diante de um processo de violência, a quem recorrer. E também que os gestores tenham claro quais os procedimentos devem adotar. Na segunda-feira, diante da Adenilza, as colegas não sabiam o que fazer, os professores, gestores, não sabiam. Nós sabemos porque isso é o cotidiano do Fordan, é o que fazemos há 19 anos. Mas a universidade precisa ser instruída e criar uma estratégia para resolver essas situações.
Qual orientação para quem sofrer, testemunhar ou souber de violências ocorridas dentro dos campi?
A orientação é: se você sofreu uma violência, procure a Justiça. A universidade precisa resolver na esfera administrativa. O que é Justiça, tem que ser resolvido na Justiça. Faça um boletim de ocorrência online, se não tiver feridas. Se tiver feridas, tem que fazer um boletim presencial na delegacia mais próxima. A mais próxima da Ufes é a de Goiabeiras. Junte toda essa papelada e solicite uma medida protetiva. Quem vai orientar todo esse processo? A própria delegacia pode orientar, mas peça também orientação à Defensoria Pública. Na parte administrativa, com esses documentos, procure o gestor responsável por você. Se você é estudante, pega toda a documentação e vá ao colegiado. Faça uma carta ao colegiado e peque os dados de todas as pessoas que são testemunhas e solicite que medidas protetivas sejam resolvidas. Pegue a mesma carta e encaminhe ao seu diretório acadêmico e ao DCE, que é o diretório central. E acompanhe a sua denúncia para saber se dentro da universidade houve algum retorno. Se não houver, faça denúncia na Ouvidoria. É isso, sem luta não existe vitória. E um abraço a Adenilza pelo processo que ela sofreu. Porque nós que estamos dentro da universidade sabemos o que é o dia a dia da universidade. Uma mulher que há trinta anos trabalha servindo as pessoas como é a Adenilza, uma mulher preta, simples, que chega na universidade às 6h, não merece ser tratada como foi.
Empatia
Adenilza tem consciência do respeito que merece. Diante de tudo o que passou, o que ela deseja é segurança e paz para trabalhar e viver. “Eu sei que vai dar tudo certo e quero chamar atenção da sociedade para o que aconteceu. Aqui na Ufes é uma cidade e não pode mais ter esse ódio, esse racismo, essas agressões. Espero que a comunidade universitária abra os olhos para o que acontece todos os dias. E que as pessoas passem a ter mais empatia”.