Capturas incidentais, poluição e crise climática estão entre as sete principais ameaças às espécies
Um dos animais mais carismáticos dos oceanos, as tartarugas marinhas tiveram seu Plano de Ação Nacional (PAN) renovado, com sete objetivos específicos a serem atingidos no quinquênio até 2028. Entre as principais ameaças, estão a captura incidental em redes de pesca, a poluição dos mares e a crise climática.
Apesar das cinco espécies que ocorrem no Brasil terem melhorado seu status na Lista Vermelha, de espécies ameaçadas de extinção, quatro delas continuam em risco de desaparecem e uma delas está sob a condição de “quase ameaçada”. A espécie em situação mais preocupante continua sendo a tartaruga-de-couro ou tartaruga-gigante (Dermochelys coriacea), classificada como “Criticamente em Perigo”, que tem no litoral norte do Espírito Santo seu principal sítio reprodutivo no país.
“A Dermochelys tem apresentado uma recuperação lenta da sua população e com muita oscilação, nos pontos onde as desovas historicamente já se concentram, como Espírito Santo e Bahia. E uma nova população está começando a se demonstrar no delta do Parnaíba [no litoral do Piauí e Maranhão], numa época distinta, entre junho e julho, coincidindo com o período reprodutivo do Caribe”, relata o oceanógrafo Joca Thomé, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas e da Biodiversidade Marinha do Leste (Centro Tamar) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
As demais quatro espécies que ocorrem no Brasil também conseguiram recuperar bem sua população, se comparada com os anos 1980, quando o Projeto Tamar começou a atuar, a ponto de terem melhorado sua classificação na lista vermelha, passando, cada uma, para um nível menos grave de ameaça.
A Cabeçuda (Caretta caretta), espécie mais frequente nas praias capixabas, onde ela tem seu segundo maior sítio reprodutivo no país, e a Oliva (Lepidochelys olivacea) estão classificadas hoje como “Vulneráveis”. A tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricatta) agora está como “Em Perigo”. E a tartaruga-verde (Chelonia mydas), como “Quase Ameaçada”, situação que ainda demanda ações de conservação até que a espécie possa sair da lista vermelha.
A recuperação expressiva da população da tartaruga-verde se deve principalmente às ilhas oceânicas localizadas entre o Brasil e a África, como Ascensão, Cabo Verde e Santa Helena, onde as desovas aumentaram sobremaneira, como constam nos registros das entidades que protegem as tartarugas marinhas nesses países. “As Chelonia que desovam em Rocas, Noronha e Trindade [ilhas oceânicas brasileiras], estão estáveis”, compara Joca Thomé. É para a costa do Brasil, no entanto, que muitos dos filhotes nascidos no caminho para a África vêm se alimentar. “Observamos um índice crescente de juvenis na nossa costa e a análise genética mostra que a maioria deles vem dessas outras ilhas, que não brasileiras. Já os juvenis de Trindade quase não vêm para a costa brasileira”.
Pesca artesanal
Sobre as principais ameaças que pairam sobre as tartarugas marinhas, a captura incidental em redes de pesca tem motivado várias iniciativas bem-sucedidas de parceria entre os pescadores e os pesquisadores do Tamar e outras instituições envolvidas na conservação desses répteis aquáticos.
Duas delas foram implementadas de forma pioneira no Espírito Santo e tendem a ser copiadas por outros estados. “O Espírito Santo é o único estado que conseguiu limitar a pesca do camarão à sua própria frota. Barcos de fora não podem pescar aqui”, afirma o coordenador do Centro Tamar/ICMBio.
Outra experiência é a da mudança do período do defeso do camarão, sendo estabelecido um defeso único, que coincide com o período reprodutivo das tartarugas marinhas. “Antes era dividido, 45 dias em novembro e depois em março de novo. Não era bom para ninguém. Agora, a proibição da pesca ocorre em um período compatível com a proteção das tartarugas e permite um tempo maior de pausa para o camarão se reproduzir, para os pescadores fazerem reformas em seus barcos. Estamos tentando repetir esse modelo em Sergipe. Lá, são mil fêmeas mortas nos primeiros quinze dias de janeiro, no intervalo entre os dois períodos de defeso”.
Uma tecnologia que também tem ajudado na proteção das espécies é o anzol circular nos espinheis da pesca industrial, lançado em 2017, quando do início do segundo ciclo do PAN para Conservação das Tartarugas Marinhas. Outras técnicas incluem o TED, que é mecanismo que cria um alçapão para a tartaruga marinha sair da rede de arrasto, quando é capturada, e a pesca exclusivamente diurna. “Estudos indicam que as capturas incidentais de tartarugas marinhas em redes de pesca ocorrem principalmente à noite”, explica.
Joca Thomé pondera que uma maior proteção da pesca artesanal também pode beneficiar as tartarugas marinhas, já que a pesca industrial predatória, que se espalha muitas vezes de forma indiscriminada e ilegal, acaba encurralando os pescadores artesanais em regiões muito próximas da costa, onde ocorre a maior parte das capturas incidentais de juvenis. Garantidos os Territórios Pesqueiros dessas populações tradicionais existentes ao longo de toda a costa brasileira, inclusive com forte presença cultural e econômica no Espírito Santo, os barcos artesanais teriam uma área maior de trabalho, reservando naturalmente as áreas onde as tartarugas se concentram em busca de alimentação. “É preciso garantir os territórios pesqueiros da pesca artesanal”, afirma.
Poluição, crise climática e gestão costeira
A poluição do mar traz prejuízos enorme às tartarugas marinhas, seja pela ingestão de plásticos e outros lixos, seja pela contaminação química. A lama de rejeitos de mineração que vazou da barragem de Fundão até o litoral capixaba, em decorrência do crime da Samarco/Vale-BHP no Rio Doce em 2015, por exemplo, já mostra seus efeitos sobre elas. “Houve perda genética, devido à contaminação pela Samarco”, informa Joca Thomé.
Sobre os efeitos da crise climática nas tartarugas marinhas, o coordenador conta que os estudos e monitoramento continuam sendo feitos. O aumento da temperatura média incide diretamente sobre a proporção entre fêmeas e machos, já que em areias com temperatura acima de 30ºC, nascem filhotes fêmeas e, abaixo disso, machos. A elevação dos oceanos também reduz as áreas de desova.
Há ainda mudança nas espécies marinhas e, consequentemente na oferta de alimentos para as tartarugas, o que, em algumas situações, elas atuam como mitigadoras de danos, como é o caso da Dermochelys, que se alimenta principalmente de águas-vivas, que têm se multiplicado sobremaneira, com o aumento da temperatura média dos oceanos. “O Atlântico está 2ºC mais quente que o normal, segundo os estudos científicos. E os surfistas aqui do Espírito Santo, de Regência, relatam que têm sentido a água mais quente”, exemplifica.
Outro controle natural das tartarugas marinhas se observa na costa, quando as restingas são preservadas nas áreas declaradas legalmente como pontos de reprodução desses animais e, por isso, mais protegidos por ações humanas predatórias. “A ocupação desenfreada, sem controle, é um grande problema no litoral. As tartarugas auxiliam na gestão costeira, na manutenção da linha de costa”. Um exemplo marcante foi a não instalação do porto Manami, em Linhares, norte do Estado, decisão em que a proteção das tartarugas marinhas foi um dos pontos principais considerados.
Trabalho interinstitucional
O terceiro ciclo do PAN Tartarugas Marinhas foi oficializado pela Portaria 1.544, publicada no último 22 de maio, Dia Internacional da Biodiversidade, junto à Portaria 1.545, que institui o Grupo de Assessoramento Técnico (GAT), formado por um grupo de instituições que irá acompanhar o andamento do plano.
Conforme noticiou na ocasião o ICMBio, este terceiro PAN e seu respectivo GAT são resultado de um amplo trabalho de discussão técnica e planejamento, realizados desde agosto de 2023, por 28 especialistas em tartarugas marinhas, entre pesquisadores e representantes de instituições que atuam na costa brasileira do Pará até o Rio Grande do Sul, e servidores do ICMBio.
O objetivo geral desse 3º Ciclo do PAN é “reduzir as ameaças e pressões às tartarugas marinhas e seus habitats, por meio do aprimoramento das ações de conservação, pesquisa, monitoramento e políticas públicas, visando diminuir o risco de extinção dessas espécies”.
O coordenador Joca Thomé destaca que, para que os objetivos sejam cumpridos, são necessários recursos orçamentários federais e parcerias, bem como recursos humanos do staff do Centro Tamar e de especialistas em universidades, ONGs e instituições de pesquisa e conservação. “A palavra de ordem é somar forças em um mesmo objetivo comum, que é conservar esses animais transfronteiriços que representam não apenas uma rica biodiversidade, mas que auxiliam no equilíbrio de todo o oceano”, reforça.