Fato ocorreu em audiência na Vara da Família de Vitória. Promotor foi denunciado a conselhos nacionais
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) receberam denúncia que aponta “violência institucional” do promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva, do Ministério Público do Espírito Santo (MPES), durante audiência na Vara da Família de Vitória (processo nº 5034972-34.2023.8.08.0024).
A vítima é uma mulher que solicitava pensão alimentícia do ex-marido, do qual ela foi vítima de agressões constantes ao longo dos vinte anos em que viveram juntos e contra quem ela detém Medida Protetiva de Urgência (MPU), devido à gravidade das violências, inclusive com tentativa de feminicídio.
Conforme áudio gravado no momento da audiência e anexado à denúncia, Luiz Antônio de Souza Silva “insinuou, de modo jocoso”, que a mulher, por ter cinco filhos com o agressor, deveria voltar a morar com ele. “Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos. Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá?”.
Presentes na audiência estavam, além do promotor, a vítima, Alessandra de Souza Silva, o ex-marido e agressor, Carlos Augusto de Aguiar, a defensora pública Julia Mansour Siqueira e a juíza Clesia dos Santos Barros. Em discussão estava o pedido de pensão alimentícia e a regulação de guarda e convivência das cinco filhas, todas menores de idade.
“É, porque todo mundo é livre. Mas olha a consequência…os filhos depois crescem, gente. Os filhos precisam. Então precisa do ambiente mais…porque assim, a questão única não é só o dinheiro, a questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem”, prosseguiu o promotor, alegando o bem-estar das crianças, mas desconsiderando o histórico de graves violências cometidas pelo ex-marido contra a mãe de suas filhas.
A denúncia foi encaminhada pelo programa de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Fordan/Ufes) à presidente do CNDH, Marina Dermmam, e ao presidente do CNMP, Antônio Augusto Brandão de Aras.
O documento narra as informações colhidas durante acolhimento de Alessandra na sede do Fordan, no campus de Goiabeiras. “A Sra. Alessandra afirma que o promotor de Justiça Dr. Luiz Antônio constrangeu-a, fazendo comentários sobre a quantidade de filhos que ela tem, e que ela deveria ‘aquietar o facho e ficar o resto da vida junto’ com o ex-marido (de quem ela tem a MPU). Ele fez também comentários sobre a idade dela e outras coisas”.
A denúncia menciona a Lei nº 14.188/2021, que tipifica condutas que podem ser classificadas como violência psicológica, uma das várias formas de violência contra a mulher, elencadas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), e uma das violências que Alessandra sofreu do ex-marido ao longo das duas décadas do casamento, e também do promotor, na citada audiência na Vara da Família.
“Eu morei 20 anos com meu marido, o que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico”, relatou ao Fordan. “Chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para promotor, aí a gente sai de lá como lixo né? Fica humilhada mais ainda, a gente pegar dá uma denúncia, a gente vira chacota, e aí o que acontece, a gente fica calada e volta para casa”, acrescentou.
O documento também pontua a necessidade de que os presidentes do CNDH e CNPM considerem a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ao avaliar o caso, visto que “as mulheres negras são as mais vulneráveis a essas violações” e a vítima, conforme sua autodeclaração durante o acolhimento do Fordan, é “mulher preta e periférica”, bem como suas filhas, todas crianças negras.
Assinado pela professora da Ufes Rosely Pires, coordenadora-geral do Fordan, e pela advogada Cristiana Ribeiro da Silva, integrante da equipe jurídica do programa, o documento pede o “acompanhamento ativo” dos trâmites da denúncia, garantido que “procedimentos e coletas de provas sejam realizados de forma célere e efetiva, visando a aplicação correta da lei, evitando a impunidade”.
Vitória
Apesar da violência institucional denunciada, Alessandra saiu da audiência, realizada no dia 20 de março, com decisão da juíza pelo direito da pensão alimentícia no valor mensal correspondente a 50% do salário-mínimo, sendo 10% para cada filha, além da determinação de que “o genitor arcará ainda com 50% do material escolar das filhas e dos medicamentos não fornecidos pelo SUS [Sistema Único de Saúde], mediante apresentação da nota fiscal e receita”.
A sentença, descrita na ata da audiência, define ainda pela “residência das [filhas] menores na casa materna” e pelo “termo de guarda compartilhada, com convivência livre, mediante prévio ajuste com a genitora”.
Mais uma vitória de Alessandra que, desde a decisão de se separar do agressor de duas décadas e apesar das violências institucionais sofridas – como a revogação apontada como irregular da sua MPU pela juíza da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra Mulher de Vitória, Brunella Faustini Baglioli –, vem conquistando direitos e melhor qualidade de vida, com independência e crescente autonomia para decidir sobre seu presente e futuro, bem como de suas filhas.
Inicialmente acolhida pelo Fordan, hoje ela também é uma das integrantes da Equipe de Saúde, atendendo outras mulheres em situação de violência acompanhadas pelo programa, com seu trabalho de massoterapeuta, que também exerce de forma profissional.
“Quando a gente toma coragem e atitude, consegue as coisas”, disse, em entrevista ao podcast Aplicativo Fordan, em novembro passado. “Você não quer ficar com ele? Procura uma casa de apoio, pode voltar a estudar”, aconselhou, dirigindo-se a mulheres que vivem em situação de violência doméstica. “Hoje eu sou independente, graças a Deus”, afirma.
‘Hoje eu sou independente, graças a Deus!’
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