Servidora conseguiu medida protetiva de urgência contra o acusado, que deve manter distância mínima de 200 metros
Uma servidora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) obteve Medida Protetiva de Urgência (MPU) contra o professor O.G.T.D.S, então diretor do centro ao qual ela está vinculada, em função de denúncias de estupro e assédio moral e sexual que relata sofrer há mais de dez anos. O documento, emitido no final de junho, obriga o acusado a manter distância mínima de 200 metros da vítima, sob pena de prisão. Após a medida judicial, uma medida administrativa também foi tomada pela Administração Central da Universidade e o ex-diretor, que seria promovido a uma função de superintendente, teve a nomeação cancelada. Para preservar a privacidade da vítima, que pediu anonimato na reportagem, seu nome não será divulgado.
A MPU foi concedida pela juíza Hermínia Azoury e determina ainda ao ex-diretor: “não manter contato com a vítima nem seus familiares ou testemunhas, por qualquer meio de comunicação; não efetuar publicações em redes sociais e/ou aplicativos de celular (WhatsApp e outros), contendo comentários ou imagens da vítima, bem como da presente Medida Protetiva de Urgência, e ainda veicular print de conversas realizadas com a vítima e seus familiares; e não frequentar os locais onde a vítima costumeiramente frequenta, como local de trabalho, local de lazer, igrejas, etc.”.
O documento se baseia em Boletim Unificado registrado no último dia 14 de junho na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) de Vitória. Nele, a vítima relata que o primeiro episódio de violência ocorreu no início de 2012, na sala onde ela trabalhava, dentro do campus de Goiabeiras. Três anos antes, os dois haviam tido um relacionamento amoroso, logo que ela havia passado no concurso público para servidora da universidade. A relação durou três meses e terminou por iniciativa dela, quando descobriu que o chefe era casado.
Denominando a vítima como “declarante”, o BU traz o seguinte relato desse primeiro episódio (transcrito apenas retirando os nomes dos servidores citados): “Ela estava no trabalho quando o suspeito entrou na sala, trancou a porta por dentro, abaixou a calça, agarrou a cabeça dela com violência e a empurrou em direção ao seu órgão genital e com mais violência pressionava seu pênis na boca da declarante. O suspeito segurava a cabeça dela com muita força e continuava praticando o ato. Isso a fez entrar em choque e sem reação de defesa. Porém, em certo momento conseguiu gritar o nome de um colega (…) que trabalhava numa sala próxima. Depois que gritou (…), o suspeito a soltou e, com muita dificuldade, a declarante conseguiu sair da sala, estava com medo e vergonha e não conseguiu contar para ninguém, mas foi acolhida pela professora (…). Mesmo sem contar, após esse fato, ela teve depressão, crises de choro e ideação suicida, precisou se afastar do trabalho por licença médica. A pressão psicológica advinda de toda a situação a abalou muito, um problema neurológico se agravou, a paraparesia espástica, dificultando o jeito de andar”.
O BU registra que a vítima pediu que fosse retirada a tinta dos vidros de sua sala, para evitar que novos assédios acontecessem, o que foi autorizado. Porém, mesmo não havendo outros episódios dentro da sala, os assédios passaram a acontecer em outros locais. “Após isso, o suspeito adquiriu o comportamento de dar abraços e beijos na declarante, não autorizados por ela, criando um ambiente de intimidação e desconforto. O suspeito a abraça e pressiona o corpo dela, deixando a declarante sem ação, paralisada, sem graça e totalmente constrangida”, informa o BU.
Em 2018, prossegue, “o suspeito, na função de (…), de forma jocosa, encenava o jeito dela andar, imitando como as mãos dela se movimentam e como ela manca para se locomover”. Nesse ano, a vítima fez uma denúncia na Ouvidoria da Ufes, mas a retirou em seguida, segundo o BU, atendendo ao pedido do próprio acusado, com medo de represálias, por ser seu superior hierárquico.
“Em dezembro de 2023, ele entrou na sala dela e de forma jocosa elogiou o novo corte de cabelo, dizendo ‘Você ficou bonitinha’, ‘eu poderia fazer outros elogios, mas não vou fazer, pois seu esposo está sempre por aqui’. Isso a deixou constrangida e com medo dele. Na verdade, toda vez que ela o vê, ela se sente muito mal”, conta o BU, em outro trecho.
“Ainda nesse mesmo mês, no final de uma reunião de trabalho, quando ela se levantou para sair da sala, ele a agarrou, pressionou o corpo dele no dela e ainda pediu que o abraçasse. A declarante ficou paralisada e isso trouxe lembranças da tentativa de estupro. O outro servidor que estava na sala, (…), nada fez, pois achou que fosse um ato carinhoso do chefe. A declarante voltou para a sala de trabalho e começou a chorar”, continua.
O último assédio registrado no BU ocorreu em maio último: “o suspeito se posicionou, dentro do carro, próximo ao local onde a declarante passa para ir embora e ficou a encarando, mas não disse uma palavra. A declarante ficou com medo e acredita que ele fez isso pois soube que ela está recebendo ajuda do Fordan”.
Rede de apoio
O caso foi denunciado pelo programa de extensão e pesquisa Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Fordan/Ufes), que acolheu a servidora quando ela tomou a decisão de romper o silêncio que revitimizava.
A advogada Layla Freitas, pesquisadora do Fordan, destaca a coragem da servidora em fazer a denúncia, mesmo sendo o acusado seu superior hierárquico e mesmo passado tanto tempo do ocorrido. “Sabemos do quanto o assédio sexual é comum no ambiente de trabalho, principalmente contra mulheres. Porém, algo que é pouco divulgado é que, muitas vezes, isso pode evoluir para uma violência sexual como o estupro. Infelizmente, é este o caso. É preciso dizer que a vítima foi muito forte e corajosa. Enfrentar o agressor, o sistema e a sociedade, que são machistas e patriarcais, não é fácil. E, por isso, é comum que a vítima não busque assegurar seus direitos”.
Além do Fordan, a servidora também é assistida pela Defensoria Pública Estadual, por meio do seu Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem/DPES), que a representa judicialmente no caso. “É fundamental, além do acolhimento e fortalecimento da vítima, que a mesma seja recebida pelas instituições de forma respeitosa, que não a revitimize. Protegendo-a. Para além disso, o fato da vítima conseguir uma medida protetiva contra seu agressor, em muito, lhe traz alívio e segurança, já que estamos falando de um grau hierárquico no trabalho”, complementa a advogada.
‘É crucial que denunciem!’
A servidora apenas quis ressaltar a necessidade de romper o silêncio, como um incentivo a todas as pessoas que passem por situação semelhante: “a única coisa que eu gostaria de falar é enfatizar a importância de que as mulheres não permaneçam em silêncio. É crucial que denunciem!”.
Um estupro a cada dois minutos
Um documento publicado no ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre estupro no Brasil, com orientações para políticas públicas – Policy Brief nº 22, vinculado ao Anuário Brasileiro de Segurança Pública –, dá conta de que as estimativas indicam a ocorrência de um estupro a cada dois minutos no país. Mais grave é que, desse total, apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.
“Naturalmente, seria esperado que a taxa de atrito fosse maior na saúde, uma vez que nem todas as vítimas de estupro demandam serviços médicos ocasionados pelo crime em questão e nem sempre há a oferta desses serviços na região de residência da vítima. Por outro lado, muitos casos de estupro cujas vítimas foram acolhidas, em primeiro lugar, no sistema público de saúde, terminam sendo encaminhados à polícia”, pondera a publicação.
Os dados compõem a pesquisa “Elucidando a prevalência de estupro no Brasil a partir de diferentes bases de dados”, realizada pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest/Ipea). O objetivo, explica a publicação, é “estimar a predominância de estupro e sua taxa de atrito nos sistemas de saúde e policial brasileiros, ainda que de forma aproximada, a partir da análise conjugada de dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS/IBGE) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/Ministério da Saúde)”.
Entre as recomendações, o estudo inclui a aplicação de mais investimentos em “capacitação e estruturação de rotinas de notificações nos registros sobre estupros no país, desde a expansão da cobertura do Sinan (mais de mil munícipios não apresentam anualmente nenhuma notificação de violência e/ou apresentam dados divergentes de outras fontes) a processos que evitem ou minimizem erros no preenchimento dos dados”.
Nesse sentido, acrescenta, é “crucial (…) que o Estado produza a primeira pesquisa nacional sobre violência doméstica e sexual, para balizar de forma mais efetiva as políticas públicas de enfrentamento ao problema”.
Ações, aponta, que necessitam vencer profundas desigualdades e preconceitos. “Soma-se a isso o enorme desafio relacionado aos vários problemas para a atenção à saúde e à segurança das vítimas de violência no Brasil, entre eles as desigualdades regionais da oferta de estrutura de delegacias e policiais e serviços médicos e psicológicos, assim como a capacitação descontínua e insuficiente dos profissionais, além de barreiras morais e religiosas que acabam por influenciar todo o processo”.
Homem que é Homem
Ao final do Boletim Unificado do caso ocorrido na Ufes, a autoridade policial acrescenta: “indicamos o suspeito para participar do projeto Homem que é Homem, por entender que ele tem o perfil para tal projeto”.
A iniciativa, conforme informou o governo do Estado, foi criada em 2015 por psicólogas e assistentes sociais da Polícia Civil do Espírito Santo. “As intervenções com os agressores são conduzidas por meio de grupos reflexivos, abordando questões que desafiam o ciclo de violência doméstica e familiar em que estão imersos. Essas atividades proporcionam uma reflexão crítica sobre a realidade vivida pelos participantes”, explica.
Inicialmente implementado na Grande Vitória, hoje o projeto atua em 23 municípios, com previsão de atender a mais 10 em breve. O objetivo é “intervir com homens agressores de forma que ultrapasse a abordagem punitiva e repressiva” e “contribuir para a redução da reincidência de violência contra mulheres”.
Defesa do acusado
Procurado por Século Diário, o acusado afirmou, por meio de sua advogada, que prefere não se manifestar na reportagem.
Em recado enviado pelas redes sociais ao grupo de profissionais do centro da Ufes onde atua, ele afirma que “a servidora apresentou em seis meses três denúncias diferentes” contra ele. “Em dezembro, uma denúncia por assédio moral, em março, uma denúncia por improbidade administrativa e, finalmente, em junho uma denúncia de importunação sexual grave”.
Nota Ufes
A Reitoria da Universidade se manifestou por meio de nota: “A Administração Central da Ufes informa que todas as denúncias envolvendo membros da comunidade acadêmica serão devidamente apuradas pelas instâncias competentes. Informa, ainda, que estes processos são recebidos, analisados e julgados em sigilo, conforme preconiza a legislação”.