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​O enterro do General

O gongo gongava, impiedoso

Ary Barroso e esposa com Walt Disney e esposa, 1942 (Wikipedia)

O mendigo da praça de há muito havia perdido o nome de batismo e cartório, e todos o chamavam de General, porque nunca tirava um velho e desbotado casaco de policial. Vivendo de esmolas e dormindo sempre no mesmo banco da mesma praça, ali mantinha também seus pertences: uma sacola plástica estufada sabe-se lá com quê. Não tinha emprego e não fazia biscates, não pagava impostos nem esmolava, não votava no da direita ou da esquerda, não tomava banho nem roncava, mas também não incomodava ninguém. Comia se lhe dessem o que comer, nunca pedia.

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Sua única função era ajudar os carros a estacionar nas apertadas vagas em volta da praça, mesmo se não fosse preciso. Pode dar uma lavadinha aí, General? Não Sinhô. Mesmo assim, a gorjeta pingava entre os homens de boa vontade, que os outros xingavam. As mulheres já carregavam na bolsa alguma sobra do lanche de ontem, uma banana madura demais, os restos do que comeram na lanchonete ali perto, ajudando a alimentar a figura – nunca davam dinheiro. Ele não pedia e nem agradecia.

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Não que fosse ingrato ou mal-educado, apenas era o General, e não devia favor a ninguém. Mas sabia cantar, e quando passava alguma garota bonita abria a voz – Meu coração, não sei porque…, A deusa da minha rua… Tu és, divina e graciosa estátua majestosa… O repertório do Orlando Silva era vasto, o General cantava todas. O povo ria, aplaudia, mas as garotas evitavam passar no local, quando possível, irritadas com a homenagem. Muitas davam grandes voltas por ruas paralelas para não se expor ao ridículo com a homenagem do General.

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Era fã incondicional do Orlando Silva, o cantor das multidões, e do Ary Barroso, compositor e flamenguista convicto. Quem ainda se lembra? Os dois eram grandes, juntos eram um fenômeno. O Ary tinha um programa na Rádio Tupi, A Hora do Calouro, onde a tônica não era a música, mas seu lendário mau-humor. O calouro se aproximava, já tremendo. Vai cantar o quê? Rosa. De quem? De quem o quê? O autor, meu amigo, a pessoa que compôs essa obra prima. Sei não senhor. O apresentador já bufava. Tá bom, vai em frente. Tu és, divina e graciosa ‘istauta’ majestosa…

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O gongo gongava, impiedoso. Vai cantar essa ‘istauta’ na casa da senhora vossa mãe! Entra o próximo incauto. Vai cantar o quê? Aquele sambinha… Tem nome seu ‘sambinha’? Aquarela do Brasil. O gongo soava antes mesmo do sujeito cantar a primeira nota. Vai cantar seu ‘sambinha’ lá na… A produção cortava o resto. Assistindo o programa no rádio chiando do bar da esquina, ao som das garrafas de cerveja batendo no mármore das mesas, o General ria de chorar. Era seu momento de glória, e nunca faltava quem lhe desse um resto de cerveja, não muito gelada, mas ainda espumante.

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Quanto ao Ari, o humor só era pior quando o Flamengo perdia. Hoje tenho minhas dúvidas se todos aqueles calouros que faziam papel de tolos no programa não eram humoristas anônimos, pagos para levar broncas do apresentador. Apesar do gongo, era difícil conseguir uma vaga, e dali surgiram grandes nomes, como Ângela Maria, Elizeth Cardoso, e tantos outros. Conheci o filho da Dalva de Oliveira, que contava histórias (alegres) sobre os famosos pais. Quando ele se retirava, as pessoas cochichavam, Quem era o pai dele, mesmo? Ninguém perguntava quem era a mãe. Grande Dalva, mas a Ave Maria no Morro, do Herivelto Martins, ainda hoje é cantada e celebrada em vários idiomas.

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O tempo passa e esses personagens já partiram desta para a melhor. Famosos em seu tempo, mas que poucos lembram, porque a avalanche de informações, imagens e eventos com que a TV e a Internet nos assolam constantemente não deixam tempo nem lugar para o passado. Vale a pena ver de novo? A praça também não se lembra do General, e os motoristas têm que pagar aos flanelinhas para estacionar. Quem se lembra dele são algumas velhinhas que ainda passam por ali, ouvindo saudosas a antiga homenagem – Tu és, divina e graciosa… Não é que o General cantava bem?

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