Bruna Taño e Ana Claudia Gama afirmam que campanha não alcança os objetivos desejados
O Setembro Amarelo, campanha de prevenção ao suicídio no Brasil, não tem alcançado os objetivos desejados e pode até ter efeito contrário para algumas pessoas com ideação suicida. Essa é a opinião de duas especialistas em saúde mental do Estado: Bruna Lídia Taño, doutora em Educação Especial e professora do curso de Terapia Ocupacional na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e Ana Cláudia Gama Barreto, psicóloga e conselheira efetiva do Conselho Regional de Psicologia do Espírito Santo (CRP 16).
No País, segundo pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) noticiada pela Agência Brasil em fevereiro deste ano, houve crescimento médio de 3,7% ao ano da taxa de suicídio, entre 2011 e 2022, e de 21% em autolesão. Entre jovens, o aumento das duas taxas no mesmo período foi de 6% e 29%, respectivamente. No Espírito Santo, de acordo com dados do sistema Datasus, do Ministério da Saúde, foram 257 óbitos por lesões autoprovocadas voluntariamente em 2023, contra 243 em 2022, o que representa uma elevação de 5,5% de um ano para o outro.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) promovem o Setembro Amarelo desde 2014. A iniciativa tem sido bem-vista pela sociedade em geral como forma de jogar luz sobre um tema considerado tabu, e diversas empresas e organizações públicas adotam os símbolos da campanha no mês de setembro, como o laço amarelo. Entretanto, tem crescido o número de especialistas em saúde mental críticos à proposta.
Para Ana Cláudia Gama, o Setembro Amarelo teve importância no início como forma de dar visibilidade ao tema, mas é preciso avançar e começar a tratar do assunto o ano todo, e não em um único mês. Segundo a representante do CRP 16, a concentração da campanha em setembro tem representado uma inundação de conteúdo nas redes sociais em um período específico, em muitos casos produzido de forma superficial por pessoas sem preparo, ao modo de estratégias de marketing.
“O que tem chegado para a gente é que essa overdose de conteúdo acaba despertando reações negativas nas pessoas. Inclusive, pessoas que estão em situação de fragilidade ficam o tempo todo sendo convocadas a pensar sobre aquilo. E isso acaba tendo efeito iatrogênico – o que era para fazer o bem, acaba causando adoecimento”, explica.
Bruna Taño alerta para o fato de campanhas como Setembro Amarelo e Janeiro Branco – essa última, de conscientização sobre saúde mental – terem sido criadas em um contexto neoliberal, em que as questões de saúde mental da população são encaradas como transtornos individualizados, sem considerar aspectos sociais e coletivos do cuidado emocional.
“Essas campanhas são forjadas num contexto neoliberal de produção de um cuidado em saúde que não gera dignidade, inclusão e participação sociocultural, mas sim que depositam nos corpos das pessoas as culpas, responsabilidades e justificativas em relação à produção dos sofrimentos. São marcas de lobby importantes entre associações de categorias profissionais, do mercado da saúde (aqui incluída indústria farmacêutica) e como estratégia de marketing de qualquer empresa/negócio”, comenta.
A pesquisadora da Ufes cita ainda o crescimento das chamadas startups de saúde mental, que desenvolvem ações de autocuidado por meio de aplicativos, como meditação e mudança de hábitos alimentares. Muitas empresas, inclusive no Espírito Santo, utilizam esses aplicativos como forma de melhorar os ambientes de trabalho. “Isso perverte a ordem das coisas. O que provoca adoecimento é justamente condições de trabalho ruins, incluindo baixos salários e exposição à violência e abuso”, critica.
Fenômeno multifatorial
As duas especialistas destacam que o suicídio é um fenômeno amplo e complexo, que envolve diversos fatores, incluindo condições socioeconômicas e recortes étnico-raciais, de gênero, orientação sexual e idade.
“É um evento multifatorial. A gente tem que levar em conta todo o histórico e o entorno. Hoje, está mais do que comprovado que questões financeiras abalam as pessoas emocionalmente e podem levar ao suicídio”, afirma Ana Cláudia.
“O que a gente tem discutido hoje é que as pessoas são ‘suicidadas’, não encontram alternativa que não seja dando fim à própria vida. As pessoas são empurradas para lidarem sozinhas com problemas individuais que na verdade são coletivos. A gente vive no tempo da ‘rede’, do ‘autoempreendimento’, vamos ter mais sucesso enquanto empreender a nós próprios. E se a gente tem valor por aquilo que a gente é individualmente, então que a gente também sofra sozinho”, argumenta Bruna.
“A questão do suicídio não se coloca da mesma forma para uma pessoa idosa, aposentada, e para um jovem negro, por exemplo. E nem todo mundo que comete suicídio necessariamente tem transtornos mentais”, complementa a pesquisadora da Ufes.
Enfrentamento
Por ser uma questão multifatorial, o enfrentamento ao suicídio também precisa mobilizar serviços e pessoas de forma abrangente e orquestrada, defendem as profissionais. A prevenção, segundo Bruna Taño, depende de estratégia comunitária, coletiva, com serviços públicos de qualidade oferecidos de forma territorial.
Ana Cláudia ainda faz um alerta: “Precisamos ter cuidado com o que a gente oferta, porque muitas vezes são oferecidos determinados serviços e ações de apoio e cuidado, e quando as pessoas precisam, aquilo não existe. Isso acontece do ponto de vista do indivíduo, com falas como ‘estou aqui para te ajudar’, mas que os relatos são de que nem sempre a pessoa estará ali. E isso acontece às vezes em serviços anunciando ‘vem aqui, nós vamos te acolher’, quando de fato acabam não acolhendo ou demoram meses para atender”.
“Estamos vendo um aumento de suicídio de crianças e adolescentes a nível nacional. E o Espírito Santo só tem quatro Caps [Centro de Atenção Psicossocial] Infantojuvenil. A gente tem desinvestido em saúde mental no Estado, inclusive em formação permanente das equipes de saúde. E aí, adianta falar em Setembro Amarelo? Adianta unidade de saúde colocar um monte de coisas em relação à campanha? A gente precisa investir em politica pública”, afirma Bruna.
“Enquanto estivermos numa condição como a do Brasil, com a questão do desamparo social e da produção da racialização como forma de opressão e violência às pessoas negras, a gente precisa considerar que o suicídio é construído socialmente como alternativa. É em relação a isso, e às outras opressões em relação aos grupos minorizados que a gente deve atuar (mulheres, crianças, pessoas LGBTQIAPN+, entre outros)”, completa a pesquisadora.
O CVV – Centro de Valorização da Vida realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e voip 24 horas todos os dias. Caso precise de ajuda, entre em contato por meio do telefone 188 – as ligações são gratuitas a partir de qualquer linha telefônica fixa ou celular. Também é possível acessar www.cvv.org.br para chat, Skype, e-mail e mais informações sobre ligação gratuita.