Processo corre “silencioso”, com inconsistências e pedidos fragmentados
Três anos após o leilão de onze áreas de sal-gema no norte do Espírito Santo, o zoneamento ambiental da Área de Preservação Ambiental (APA) do município de Conceição da Barra foi alterado para permitir mineração em locais onde foram identificadas presenças de jazidas. O Estado abriga a maior jazida de sal-gema da América Latina e grande parte está no interior da unidade de conservação.
A modificação do zoneamento da APA Conceição da Barra foi comunicada no Diário Oficial por meio da Portaria Conjunta Seama/Iema Nº 009 R, de 18 de setembro último. No entanto, apesar de informar que o novo zoneamento seria publicado, a atualização detalhada ainda não foi disponibilizada no site oficial do Iema, onde deveria estar, segundo a portaria.
Século Diário teve acesso ao documento do plano de manejo revisado da Área de Proteção Ambiental, no qual foram incluídas zonas de produção onde estão localizadas as jazidas, permitindo a atividade de exploração. No zoneamento anterior, a maior parte das áreas que se tornaram zonas de produção eram classificadas como zonas de ocupação diversificada, utilizadas principalmente para atividades agrosilvopastoris e seu manejo visava a conservação ambiental e qualidade de vida da população.
Com a alteração no zoneamento, as empresas vencedoras do leilão realizado pela Agência Nacional de Mineração (ANM) em setembro de 2021 podem agora solicitar a licença ambiental necessária para iniciar a mineração nas áreas classificadas como zonas de produção.
Entre as quatro empresas que adquiriram o direito sobre blocos de sal-gema na região, pelo valor aproximado de R$ 170 milhões, três têm sede no Espírito Santo – Sal-Gema do Brasil LTDA, em Conceição da Barra; SG Brasil Mineração Ltda, em Cachoeiro de Itapemirim (região sul); e Dana Importação e Exportação, em São Mateus – além de uma multinacional, a Unipar Carbocloro S.A.
Inconsistências
O processo mencionado na publicação do Diário Oficial não contém as peças referentes aos pedidos de alteração do plano de manejo. Contudo, foram localizados outros dois processos paralelos que tratam a questão, um deles inclui um ofício da Prefeitura de Conceição da Barra, datado de setembro de 2021, que solicitava a alteração do zoneamento para permitir a exploração do sal-gema.
A fragmentação do processo levanta preocupações sobre uma tentativa de encobrir as movimentações e evitar que a população tenha acesso a informações e decisões que impactam diretamente a comunidade e o meio ambiente.
Outro ponto preocupante é que, apesar de muitas áreas da APA já estarem degradadas, o novo zoneamento não prevê nenhuma área para recuperação ambiental. Além disso, nas peças dos processos, não há menção a iniciativas de reparação ou compensação pelos impactos ambientais.
Três dos locais designados como zona de produção estão próximos a uma área identificada no novo zoneamento como “subzona de sobreposição (quilombos)”, onde há sobreposição do território da unidade de conservação com outras áreas protegidas, como terras indígenas e territórios quilombolas delimitados. Esses territórios incluem os quilombolas de Porto Grande e Córrego do Alexandre.
Considerando que as zonas de produção cercam os territórios quilombolas e indígenas, as comunidades têm direito de serem informadas sobre os impactos das atividades que afetam seus modos de vida e culturas e consultadas antes de qualquer decisão ou projeto que incida em seus territórios, conforme o princípio da “consulta livre, prévia e informada”, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Impulsos políticos
O sal-gema foi um dos principais impulsionadores da campanha para deputado federal do atual secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Felipe Rigoni. Após o colapso da Braskem em Maceió, causado pelo afundamento do solo decorrente da mineração de sal-gema, cujo escândalo eclodiu em 2018, ele identificou uma oportunidade para desbloquear o leilão das jazidas capixabas, descobertas na década de 1980.
Sua atuação junto à Agência Nacional de Mineração foi fundamental para sua vitória eleitoral, na qual se destacou como o segundo mais votado da história e o primeiro deputado federal cego a ocupar a Câmara dos Deputados. O leilão das jazidas aconteceu em setembro de 2021, mas, no ano seguinte, Rigoni foi derrotado nas urnas, já filiado ao União Brasil, onde atualmente preside a seção estadual.
Após sua derrota, Rigoni foi designado pelo governador reeleito Renato Casagrande (PSB) para liderar a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama). Sua nomeação gerou protestos entre os técnicos do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), a autarquia vinculada à secretaria, em relação ao desempenho ambiental de Rigoni durante seu tempo no Congresso.
Em abril deste ano, o Sindicato dos Servidores Públicos Estaduais (Sindipúblicos) lançou uma petição online pedindo a exoneração de Rigoni e a revogação da Lei 1073/2023, conhecida como “Lei da Destruição”, que flexibiliza as regras para licenças e estudos ambientais no Estado. O abaixo-assinado classifica a nomeação do secretário como “uma afronta à sociedade capixaba”, ressaltando a ausência de experiências profissionais ou políticas que o habilitem a liderar uma secretaria tão essencial.
As relações estabelecidas com setores interessados na exploração do sal-gema em território estadual são consideradas uma das questões mais alarmantes, pois indicam uma “submissão flagrante da estrutura governamental aos interesses de grupos econômicos”. Além disso, a gestão de Rigoni é criticada por sua abordagem autoritária e falta de diálogo com a comunidade e a equipe técnica do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) na tomada de decisões.
O movimento em prol da saída de Rigoni ganhou mais impulso após a controversa implementação do Programa Estadual de Desenvolvimento Sustentável das Unidades de Conservação (Peduc), idealizado pelo secretário, que estabelece a concessão das unidades de conservação para exploração econômica pela iniciativa privada, transferindo o manejo dessas áreas para a gestão empresarial, o que gera preocupações significativas sobre a preservação ambiental.
Colapso em Maceió
A mineração de sal-gema realizada pela Braskem por mais de quatro décadas em Maceió provocou um colapso estrutural que condenou cinco bairros da cidade, afetando quase 70 mil pessoas. A escavação de 35 minas, operando a cerca de 1.200 metros de profundidade desde a década de 1970 até 2019, quando os trabalhos foram interrompidos após os primeiros sinais de afundamento, resultou na formação de crateras subterrâneas do tamanho do Complexo Esportivo do Maracanã. A catástrofe vem ocorrendo em câmera lenta, com o solo progressivamente afundando.
Ao deixarem suas casas, muitas famílias não tiveram outra opção senão aceitar um acordo com a Braskem, que oferece apenas R$ 81 mil para cada uma delas, valor insuficiente para adquirir um novo imóvel e, menos ainda, cobrir todos os danos causados.
O desastre continua a se agravar e “as ações de reparação são absolutamente insatisfatórias”, como aponta o Observatório da Mineração sobre as omissões da empresa, que se mantém blindada, sob o título de maior petroquímica das Américas e uma das mais rentáveis aos investidores nos últimos anos.