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Corregedoria investiga promotor que falou para mulher ‘aquietar o facho’

Advogada alerta que é preciso “observar o rigor” do MPES na condução do caso

A Corregedoria-Geral do Ministério Público do Estado do Espírito Santo (MPES) colheu na manhã desta terça-feira (1) o depoimento de Alessandra de Souza Silva, como testemunha na Sindicância nº 2024.0012.1485-35, que apura denúncia de violência institucional praticada pelo promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva durante audiência judicial realizada no dia 20 de março, ao falar para ela “aquietar o facho” e voltar a morar com o ex-marido, que a violentou durante mais de vinte anos de casamento.

A agressão institucional foi noticiada em primeira mão por Século Diário e logo repercutida por veículos de imprensa regionais e nacionais, além de gerar manifestações de instituições como o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), que solicitou apuração do caso ao próprio MPES, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e a Comissão de Igualdade de Gênero da Mulher Advogada da OAB-ES, além de políticos, como a deputada estadual Iriny Lopes (PT)

O pedido de investigação também foi feito pela Defensoria Pública Estadual (DPES), que defende Alessandra juridicamente, e pelo Programa de Extensão e Pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Fordan/Ufes), que disparou a denúncia em âmbito estadual e nacional, e faz o acolhimento psicológico e assessoria jurídica para ela.

O início da sindicância da Corregedoria do MPES, sob condução do corregedor-geral Gustavo Modenesi Martins da Cunha, quase quatro meses depois, é bem recebido pelas instituições que acompanham a vítima, pois sinaliza a possibilidade de que, ao menos esse caso de racismo e misoginia, infelizmente muito comum no Poder Judiciário capixaba e brasileiro, não fique impune. É preciso, porém, observar o rigor com que a investigação será conduzida, alerta a advogada Carla Appolinário, professora e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena a Clínica Jurídica LGBTQIA+, e pesquisadora parceira do Fordan/Ufes.

Arquivo Pessoal

“Se a Corregedoria-Geral se omitir diante de condutas tão indesejáveis [do promotor Luiz Antônio de Souza Silva] restará a dúvida se o Ministério Público do Espírito Santo está realmente apto e disposto a atuar em prol dos direitos e interesses de toda a sociedade ou de apenas parte dela”, afirma.

O caso se destaca pela “ocorrência de falas de cunho claramente sexistas e de condutas discriminatórias que exigem um exame aprofundado da atuação do promotor” e “ambos os fatos podem se caracterizar como violência psicológica e violência processual”, analisa a advogada.

Em situações graves como essa, explica, há uma conduta considerada “mais compatível com as democracias contemporâneas e a adoção das boas práticas de gestão e o direito antidiscriminatório”. Nessa perspectiva, o ideal seria a Corregedoria-Geral do MPES ter “agido de ofício, isto é, por iniciativa própria, a fim de sinalizar a todos os membros da instituição e à sociedade que não tolera, não negligencia, não pactua e não se omite diante de fatos dessa natureza”.

A percepção de que a iniciativa da Corregedoria só ocorreu após pressão dos entes envolvidos na proteção de Alessandra e de ampla pressão midiática, assinala a especialista, merece atenção. “A abertura da sindicância foi realizada apenas após o caso ser noticiado na mídia, a partir da assessoria do Fordan e mediante provocação da vítima, que, como se não bastassem as violências (psíquica e processual) experimentadas no processo judicial, ainda teve que se mobilizar e empregar esforços psicológicos e existenciais para representar contra a atuação do Ministério Público no processo, ou seja, justamente contra aquele ator jurídico relevante que deveria atuar na defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais coletivos”.

Desdobramentos esperados

Carla Appolinário recorre ainda a dispositivos normativos como a Lei Orgânica do Ministério Público Estadual – Lei Complementar nº 95, de 28 de janeiro de 1997 – e a Recomendação nº 2, de 22 de março de 2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), para embasar as expectativas das instituições quanto à evolução da sindicância. O relatório final da investigação precisa ser encaminhado ao Conselho Superior do Ministério Público, segundo a Lei Orgânica.

Já a Recomendação nacional estabelece que a atuação dos membros do MP, em todo o território nacional, deve contribuir para “modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher”, bem como para “assegurar atendimento que reflita materialmente o tratamento igualitário na temática de gênero”, destaca. Ela conta ainda que o MPES tem atualmente um grupo de trabalho “com a atribuição específica de elaborar o Protocolo de Atuação do MP com Perspectiva de Gênero, nos mesmos moldes do que foi implantado pelo Conselho Nacional de Justiça e tornado obrigatório em 2023”.

Ainda assim, lamenta, “o que infelizmente se viu no caso em discussão, foi exatamente o oposto do caminho proposto pelo Conselho Nacional do Ministério Público até aqui, e até mesmo com a parte do Ministério Público do Espírito Santo que está envolvida com o desenvolvimento dessa política no âmbito local”.

Advogado integrante do Núcleo Jurídico do Fordan, que assinou a denúncia do caso, e professor de Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Arthur Bastos concorda com Carla Appolinário quanto ao caráter “misógino, racista e etarista” do promotor e reafirma a expectativa de rigor na investigação. “Vamos aguardar que seja gerado um processo administrativo [PAD]”, afirma.

A recorrência de comportamentos com essa característica no Judiciário afeta os grupos mais vulneráveis da sociedade, recaindo com mais violência sobre as mulheres negras e de periferia, como Alessandra. “Os estudos e pesquisas têm dado uma atenção especial a esse tipo de violência institucional, sobreposta, secundária, que tem sido uma grande violência para as vítimas de violência doméstica familiar e racismo, gerando processos de revitimização e culpabilização da vítima”, aponta o advogado.  

“A gente espera que a Corregedoria continue na investigação e que os demais órgãos, como o CNMP, ampliem a abrangência e deem encaminhamento às denúncias”, complementa.

Medida Protetiva

O Fordan e a Defensoria Pública também atuam para que Alessandra volte a ter Medida Protetiva de Urgência (MPU) contra o ex-marido, visto que, atualmente, ela está desprotegida, por decisão da juíza Brunella Faustini Baglioli, da 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Vitória.

Ela só soube que estava sem a MPU desde março, quando, em junho, foi fazer a denúncia do promotor, junto com a DPES. Foi a segunda vez que a magistrada lhe retirou uma MPU sem ouvi-la antes, conforme determina a Lei Maria da Penha, como ressaltam o Fordan e a DPES. Da primeira vez, ela soube quando o ex-marido invadiu a casa dela a ameaçando, em julho de 2023, o que indica, segundo relatou em denúncia na época, que o agressor havia sido informado da anulação da MPU antes da própria vítima.

Em entrevista ao podcast Aplicativo Fordan, Alessandra fala sobre seu processo de “reinvenção de vida”, contando como criou coragem para romper a violência doméstica que sofreu durante mais de vinte anos, voltou a estudar e hoje tem uma profissão, autonomia financeira e uma rede de apoio que a ajuda a continuar conquistando seus direitos. “Quando a gente toma coragem e atitude, consegue as coisas”, afirmou. “Não fica abaixando a cabeça para homem, não. Procura uma casa de apoio”, aconselhou.  

A restituição da MPU também já foi reivindicada formalmente pelo Fordan e DPES. “Fizemos a denúncia ao CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e aguardamos a recuperação da MPU para a Alessandra”, afirma Arthur Bastos.

Áudio

Alessandra solicitava, na audiência com a presença do promotor, pensão alimentícia do ex-marido, Carlos Augusto de Aguiar, e a regulação de guarda e convivência das cinco filhas, todas menores de idade. Conforme áudio gravado no local, Luiz Antônio de Souza Silva “insinuou, de modo jocoso”, que a mulher, por ter cinco filhos com o agressor, deveria voltar a morar com ele. “Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos. Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá?”.

“É, porque todo mundo é livre. Mas olha a consequência…os filhos depois crescem, gente. Os filhos precisam. Então precisa do ambiente mais…porque assim, a questão única não é só o dinheiro, a questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem”, prosseguiu o promotor, alegando o bem-estar das crianças, mas desconsiderando o histórico de graves violências cometidas pelo ex-marido contra a mãe de suas filhas.

Na denúncia que fez ao Fordan, após a audiência, Alessandra desabafou: “Eu morei 20 anos com meu marido, o que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico. Chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para promotor, aí a gente sai de lá como lixo né? Fica humilhada mais ainda, a gente pegar dá uma denúncia, a gente vira chacota, e aí o que acontece, a gente fica calada e volta para casa”.

Presentes na audiência estavam, além de Alessandra e o promotor, o ex-marido e agressor, a defensora pública Julia Mansour Siqueira e a juíza Clesia dos Santos Barros.

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