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Reportagem especialAi de ti, Praça do Cauê

Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
Na audiência pública sobre o transporte hidroviário realizada terça-feira (30) em Vila Velha, o secretário de Estado dos Transportes e Obras Públicas, Fábio Damasceno, destacou um ilustre princípio do Programa de Mobilidade Metropolitana do governo estadual: destinar ao carro o último lugar na hierarquia viária. Os veículos serão precedidos, em ordem crescente, por bicicletas e afins, transporte coletivo e deslocamento a pé.  
 
O que explica, então, o sorriso satisfeito de uma certa senhora de corte chanel e mãos ao volante na placa encravada em frente à Praça do Cauê? Os motoristas que vêm da Reta da Penha dão de cara com o anúncio, que, aliás, vandaliza a paisagem: “Novo acesso à Terceira Ponte na Praça do Cauê. Em breve, mais uma obra do Governo do Espírito Santo para você”. 
 

Pelo menos no discurso oficial, a abertura do Cauê associa-se umbilicalmente à implantação do sistema BRT (via exclusiva para ônibus). O futuro reserva a praça apenas para os ônibus, segundo previsão do próprio governo. Veículos, só os de moradores do entorno. Aquele sorriso fica mais enigmático. 

 
A par ou não do projeto, uma mui expressiva parcela da sociedade civil de Vitória se posiciona contra as obras orçadas em R$ 1,5 milhão que vão fatiar em duas a Praça do Cauê. A mutilação dói por si mesma.
 
Há o consenso geral de que o sistema viário de Vitória atingiu um patamar sofrível, cuja profilaxia pode estar em projetos de transporte público de alta capacidade, como o BRT. O sistema tem a seu favor a conjunção de transporte coletivo e uso racional do espaço, trasladando mais gente, num espaço menor, em menos tempo. O desestímulo ao uso do carro vem de brinde (assim se espera). 
 
Por outro lado, há o entendimento de que uma cidade não vive apenas de construção e fluxo, da simples circulação de bens, serviços e pessoas.
 
Ainda em julho o Ministério Público Estadual (MPES) enviou uma nota recomendatória ao prefeito de Vitória, Luciano Rezende (PPS) e a Damasceno orientando a adoção de providências administrativas ou jurídicas para impedir intervenções estaduais ou municipais que modifiquem a praça. Orienta também a participação direta da sociedade para tratar dos assuntos referentes à praça.  
 
Até aqui, as obras prescindiram da sociedade. 
 
Um dos pontos levantados pelo órgão questiona o abandono da praça, que, após ter virado rotatória de acesso à ponte, pena com o desamparo administrativo. Ainda assim, segundo denúncia anônima citada na recomendação, os moradores usufruem do local. São poucos, mas existem.

Dias antes, o promotor Marcelo Lemos afirmou: “A Praça do Cauê é centenária e um importante equipamento de urbanismo que não podemos perder. Não somos contra as obras, mas somos a favor de que sejam discutidas entre os dois municípios alternativas para melhorar o trânsito na região”.

 
Não é a primeira vez que querem vandalizar a Praça do Cauê. O primeiro assédio aconteceu no final dos anos 80, ao fim das obras da Terceira Ponte. Não havia ainda, porém, definição quanto aos acessos em Vila Velha e Vitória. Uma das propostas advogou a abertura da praça. A prefeitura contratou uma consultoria e outra sugestão triunfou: escoar o tráfego pela Rua Duckla de Aguiar.
 
À época prevaleceu o juízo de que não basta ligar esse ponto àquele outro de forma mais rápida. O parecer final considerou o conjunto de valores – históricos, sociais, culturais, urbanos – que pairam sobre a Praça do Cauê. Voltemos à última década do século XIX.
 
Ao final do XIX Vitória contava apenas 10 mil habitantes e via-se muito mal guarnecida de infraestrutura, água, esgoto e iluminação pública. Um dos grandes esforços para despir Vitorinha dos andrajos coloniais que lhe legaram os maus tempos de Barreira Verde e promovê-la a polo econômico do Espírito Santo foi empreendido pelo governo Muniz Freire (1892-96). 
 
Freire vislumbrava naquela ilha em desalinho uma “capital moderna”. O projeto do Novo Arrabalde foi uma ação fundamental nesse sentido. Plano de expansão urbana de Vitória assinado por Saturnino de Brito e apresentado em 1896, inscreve-se como primeira ação planejada no espaço da capital.
 
Figura-chave da história do urbanismo brasileiro, Saturnino tem estilo próprio. Um termo da pintura de paisagem inglesa do século XVIII o define: pintoresco. O que começou na pintura, se desdobrou depois para a cidade, nos jardins, parques urbanos e, por fim, na arquitetura. O, digamos assim, urbanismo pinturesco, celebra a união do citadino com a paisagem natural.
 
O próprio Saturnino nos explica qual é. Um triângulo escaleno de 60° estrutura o traçado do Novo Arrabalde: duas longuíssimas retas – as avenidas Reta da Penha e Leitão da Silva – têm como base as avenidas Cesar Hilal e Desembargador Santos Neves.
 
Ao longo das longuíssimas retas o engenheiro sanitarista propôs certos pontos para o repouso do olhar, ilhas de descanso para o tédio da ausência de movimento, o riscado enfadonho de uma linearidade excessiva.
 
Assim a sensibilidade pintoresca de Saturnino promoveu o encontro de um povo consigo mesmo: na Reta da Penha, avenida e monumento, cidade e História, se integram. 
 
Esse exemplo é clássico. A mesma avenida, porém, dispõe de outros “efeitos pictóricos”. O Bosque Sagrado, onde se propôs um cemitério (atual Petrobrás), no Barro Vermelho; o Morro da Gamela; a rótula em que se cruzam a Avenida Rio Branco e a Reta da Penha. Na base do escaleno, ao sul avultava o morro de Bento Ferreira e ao norte se impunha o Mestre Álvaro. 
 
Saturnino conciliou técnica, estética e funcionalidade. O desenho respeita a topografia do terreno, o traço do homem se aninha à paisagem. A cidade se reinventa a partir do que já é.
 
A Praça Cristovão Jacques, ou Praça do Cauê, não nasceu portanto de uma veleidade estético-urbanística. Estava prevista no projeto do Novo Arrabalde, funcionando pintorescamente, claro. Seu papel (à época, sempre lembrando): despontar como um remate estético à sisudez retilínea da Reta da Penha e como uma afável interrupção do fluxo. Para muitos, esse afável já não cabe. 
 
                                          

Segundo dados de 2010 do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Vitória concentra 30,41% do Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo e 48,14% do PIB da Região Metropolitana (a Região Metropolitana concentra mais de 60% do PIB estadual). 

 
A capital gera ainda 26,17% do total de empregos formais no Espírito Santo e 42,52%, na Região Metropolitana (dados de 2011). O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) registra uma frota de 174.674 mil veículos em Vitória. Mas como na ilha pulsa o coração da economia capixaba, o número de veículos que circulam diariamente por suas vias praticamente dobra.
 
Aí a gente cai na batida porém urgente questão da Região Metropolitana de Vitória. É um equívoco planejar Vitória sem pensar em termos metropolitanos. Este jornal já bateu as teclas da importância da gestão integrada e do equívoco das ações isoladas, sobretudo quanto à mobilidade urbana. Até aqui o BRT apresenta-se como única empreitada nesse 
sentido; o resto são mais túneis, pontes, avenidas e mergulhões.
 
Planejar Vitória ao largo da esfera metropolitana é considerar, ainda mais daqui para frente, um recrudescimento da tensão entre o pragmatismo desenvolvimentista e o desenvolvimento qualitativo.  
 
A sede da Petrobras no Barro Vermelho nos ofereceu o primeiro grande exemplo. O projeto poderia ser instalado em outro município da RMGV. O benefício seria duplo: um, a descentralização dos investimentos em Vitória, que, dois, significa avanços urbanísticos no município contemplado. Mas não: a Reta da Penha (Novo Arrabalde, de novo) ganhou uma verruga e as avenidas de Vitória incharam-se ainda mais. 
 
De pouco mais de seis meses para cá, dois empreendimentos de vulto animam debates, seja por si mesmos, seja pelo grau de salubridade à saúde viária da capital. Em 2012, nos estertores da gestão João Coser, a população de Vitória rechaçou em audiência pública a proposta do Grupo Buaiz de erguer torres residenciais e comerciais na região do tradicional centro de consumo capixaba.
 
Uma contraproposta, endossada por muitos, sugere a construção de um Parque Marítimo na área. A Prefeitura de Vitória apontou outro lugar: a Praça do Papa, já consolidada como centro de vivência pública. “Precisamos de mais áreas e não de substituir as existentes”, ponderou o economista e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Arlindo Villaschi a Século Diário em matéria de 13 de julho. 
 
Em 2009, uma proposta de demolição rondou os armazéns 4 e 5 do Porto de Vitória. Deflagrou-se um amplo debate: o desenvolvimento capixaba parecia ignorar o peso histórico do conjunto e a ebulição cultural que iluminava a região com a Estação Porto, incontestavelmente um dos mais relevantes projetos culturais capixabas dos últimos anos. A resistência teve efeito. Até o ano passado o projeto andou muito bem.
 
A Praça do Cauê é o mais novo dilema que se põe entre o progresso à capixaba – guloso e apressadinho – e um certo sentimento de direito à cidade. Ligar um ponto a outro é importante; tão quanto é saber o que a cidade pensa sobre qualidade de vida. 
 
                                                              

Afora os valores histórico, urbanístico, estético e cultural, a Praça do Cauê tem um valor social. Hoje as opções são inúmeras. Mas houve uma época em que o espaço dividiu com o Parque Moscoso a preferência das famílias para o entretenimento de suas crianças.  Vitória contava apenas com esses dois espaços de porte destinado ao lazer. 

 
Curioso é que, atualmente, o asfalto parece ter mais sucesso no papel de oferecer lazer aos moradores. Falamos das Ruas de Lazer, o genial projeto que veda aos carros longos trechos de avenida na Praia de Camburi e no Centro aos domingos e feriados.
 
Deliciosa ironia: implantadas em 2011, as Ruas de Lazer invertem a lógica da relação indivíduo/cidade predominante em Vitória. Ali saem os carros e entram as pessoas.
 
Deu muito certo. O prazer da prática esportiva e da reunião familiar dá o tom. Belezas prosaicas como criança pedalando bicicleta de rodinha sob a vigilância zelosa dos pais são cenas comuns. Aliás, as crianças são as protagonistas do projeto; a molecada se esbalda mesmo. 
 
No próximo domingo (11), um ato pró-Cauê deve reencantar a praça. Tanto por assimilação intelectual quanto por relação afetiva, um grupo que defende a preservação do lugar promove uma manifestação lúdica, cheia de atividades recreativas: oficina de reparo de bicicletas, Bike Anjo, ações sobre saúde, malabares, perna de pau, cordel, oficina de desenho para crianças, contação de história.
 
O espírito da coisa insinua-se desde o nome, Você Praça Eu Acho Graça, uma reapropriação bem-humorada do samba sessentista de Ataulfo Alves e Carlos Imperial e primeiro sucesso de Clara Nunes – Você Passa Eu Acho Graça. Mas nossas excelências, por ora, estão mais para Jorge Ben Jor: você passa e não me olha. Que pena, que pena.

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