Acordo prestes a ser assinado não condiz com a realidade dos atingidos, critica Heider Boza
O modelo do processo de reparação aos atingidos do crime da Samarco/Vale-BHP, com a transferência da responsabilidade da Fundação Renova, criada pelas empresas envolvidas, para o poder público, continua a causar insegurança entre as comunidades afetadas, que foram excluídas das negociações. Apesar disso, o acordo deve ser consolidado este mês, no total de R$ 167 bilhões, valor que também não condiz com a realidade dos danos provocados, após quase nove anos de omissões e violações.
A análise é do coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Heider José Boza. Ele aponta que a ausência de participação das comunidades atingidas “gerou muitas lacunas de insuficiência para a reparação integral e seguimos denunciando, porque fere, inclusive, a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens”.
O acordo firmado entre as mineradoras Vale, BHP e Samarco e os governos federal, do Espírito Santo e de Minas Gerais envolve a destinação de R$ 100 bilhões ao poder público ao longo de 20 anos. O primeiro pagamento, de R$ 5 bilhões, é previsto para este ano, 30 dias após a assinatura do termo.
Segundo a Advocacia-Geral da União (AGU), um dos principais pontos é a criação de cinco fundos, sendo um deles o Fundo Popular da Bacia do Rio Doce, que receberá R$ 5,1 bilhões para investimentos em projetos deliberados pelo Conselho Federal de Participação Social da Bacia do Rio Doce. Também está prevista a criação de outros quatro fundos: dois perpétuos (para saúde e enfrentamento às consequências das enchentes) e dois ambientais, sendo um gerido pela União e outro, pelos governos estaduais.
As mineradoras deverão pagar, além de indenizações diretas, programas de transferência de renda, recuperação ambiental e socioambiental, investimentos em infraestrutura, como a duplicação das rodovias BR-262 e BR-356, que cruzam os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, e verbas para a Agência Nacional de Mineração (ANM).
Estima-se que cerca de 300 mil pessoas sejam elegíveis para indenizações, no entanto, o MAB alerta que a proposta não condiz com a realidade dos danos e sofrimento enfrentados pela maioria das famílias atingidas. Outro agravante é que muitos grupos ainda lutam para serem reconhecidos como atingidos e até hoje não conseguiram acessar indenizações e programas de assistência.
“Estamos vendo fecharem o acordo ainda com comunidades e grupos dentro de áreas reconhecidas, que até hoje não obtiveram o devido reconhecimento. Um exemplo são as comunidades pesqueiras ao sul da Deliberação 58, que reconhece como atingido o litoral capixaba até Nova Almeida. Locais como Jacaraípe, Manguinhos, Carapebus, na Serra, Ilha das Caieiras, São Pedro e o Mercado da Vila Rubim, em Vitória, ficaram de fora. E em áreas reconhecidas, como em Linhares e Colatina, agricultores familiares, pescadores e outros grupos nunca acessaram a reparação, pelas dificuldades de comprovação de danos”, relata Heider.
Outro ponto de crítica é o pagamento realizado em parcelas ao longo de vinte anos, em vez de serem pagos em um único montante, o que gera incertezas sobre o cumprimento das obrigações financeiras pelas empresas conforme o cronograma estabelecido.
“Mesmo que a reparação aconteça de forma gradual, o aporte desse valor no decorrer de 20 anos é um tempo muito grande, como também para retirada dos rejeitos. É um tempo muito longo para o pagamento, porque já se passaram quase nove anos, então você ainda projeta mais 20 anos para diluir esse recurso, que já se mostra aquém do necessário”, afirma o coordenador do MAB.
Os investimentos em infraestrutura, como a duplicação das rodovias BR-262 e BR-356, também são vistos pelo MAB como medidas que não atendem às necessidades das comunidades. “Existem obras que nunca foram feitas pela Renova, como as estradas que dão acesso às comunidades de Regência e Povoação, e nove anos depois, o asfaltamento ainda não foi feito. Para nós, o correto, se a infraestrutura é uma medida de reparação, que seja nas estradas das áreas atingidas, não em rodovias federais que poderiam receber investimentos por outras fontes de orçamento público”, defende.
O rompimento da barragem do Fundão, em novembro de 2015, matou 19 pessoas e despejou milhões de metros cúbicos de rejeitos, resultando em um crime socioambiental sem precedentes no Brasil, com consequências ainda sentidas pelas pessoas atingidas. Diante do rastro de destruição nos territórios que precisam ser reconstruídos e o sofrimento de comunidades devastadas, o MAB ressalta que continuará lutando por reparações justas. “Vamos seguir cobrando, quem tiver que cobrar, para que a reparação justa aconteça e as famílias tenham os seus direitos assegurados”, garante o coordenador do movimento.
O termo
Os detalhes do acordo, fechado pelo poder público e sem os atingidos, foram apresentados em audiência pública na última sexta-feira (18), em Belo Horizonte, Minas Gerais. Dentre as aplicações, o termo estabelece a destinação de R$ 4 bilhões para um Programa de Transferência de Renda (PTR), que fornecerá auxílio mensal a pescadores e agricultores atingidos, por até quatro anos, no valor inicial de 1,5 salário mínimo – R$ 2.118,00 – e de 1 salário nos últimos 12 meses – R$ 1.412,00.
A destinação de R$ 7,09 bilhões nos Programas de Retomada Econômica (PRE) será dividido em três eixos principais: fomento produtivo (R$ 2 bilhões, geridos pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome); eixo rural (R$ 3 bilhões, geridos pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome e pelo Ministério da Agricultura e Pecuária); e Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação (R$ 2,09 bilhões, de responsabilidade do Ministério de Minas e Energia, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e Ministério da Educação).
O acordo destinará R$ 5,12 bilhões para o Fundo Popular da Bacia do Rio Doce, que, segundo os governos, financiará projetos de retomada econômica decididos pelas comunidades atingidas, além de R$ 500 milhões para reembolsar a União por custos previdenciários relacionados aos pescadores afetados, estimados em 20 mil pessoas. Também inclui R$ 380 milhões para a manutenção da Assessoria Técnica Independente (ATI) por 30 meses e R$ 640 milhões para fortalecer o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) nos municípios da Bacia do Rio Doce.
Outros R$ 8 bilhões serão destinados à recuperação de terras de Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais (IPCTs), que terão acesso aos recursos após consulta prévia e informada; e R$ 8,13 bilhões ao Fundo Ambiental da União, que será utilizado em projetos de recuperação e compensação ambiental. Além disso, R$ 6 bilhões serão alocados ao Fundo Ambiental dos Estados, coordenados pelos governos de Minas Gerais e Espírito Santo, visando a recuperação ambiental nas regiões afetadas.
A liberação gradual da pesca, atualmente suspensa por decisão judicial, ocorrerá conforme a elaboração de planos de ordenamento da atividade pesqueira, que devem ser desenvolvidos em até seis meses para a região do rio em Minas Gerais e em até 24 meses para a área costeira do Espírito Santo. Serão destinados R$ 2,5 bilhões para o Plano de Reestruturação da Gestão da Pesca e Aquicultura (Propesca).
Na área de saúde, serão destinados R$ 12 bilhões para a Bacia do Rio Doce. Desse valor, R$ 3,6 bilhões serão usados em infraestrutura e equipamentos, enquanto R$ 8,4 bilhões formarão um Fundo Perpétuo, cujos rendimentos servirão para custear adicionalmente o SUS na região. A gestão será compartilhada entre a União (Ministério da Saúde) e os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, com repasse de recursos aos municípios.
No setor de saneamento básico, serão investidos R$ 11 bilhões para antecipar a universalização dos serviços nos municípios da bacia, com a meta de reduzir tarifas. A gestão será feita em parceria entre a União (Ministério das Cidades e CC/PPI) e os Estados do ES e MG.
Também serão destinados R$ 2 bilhões para a criação de um fundo perpétuo que visa enfrentar as consequências das enchentes, como a retirada de lama, recuperação de solos e infraestrutura. A responsabilidade pela gestão desse fundo será dos Estados do Espírito Santo e Minas Gerais.
Mais R$ 4,6 bilhões serão investidos na duplicação e melhorias das rodovias federais na bacia, especificamente na BR-262 e BR-356. A União, por meio do Ministério dos Transportes, ficará responsável pela BR-262, enquanto o Estado de Minas Gerais gerenciará a BR-356, por delegação.
Já os 49 municípios localizados na calha do Rio Doce receberão R$ 6,1 bilhões. A distribuição dos recursos será feita conforme um índice definido pelo Consórcio dos Municípios (Coridoce), mediante adesão voluntária de cada município.
As obrigações que permanecem com as mineradoras após o acordo envolvem um comprometimento financeiro estimado em R$ 30 bilhões, destinado a ações de reparação socioambiental. Até agora, as empresas afirmam ter desembolsado R$ 37 bilhões, por meio da Fundação Renova. Entre as responsabilidades, estão o finalização do reassentamento das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo e a remoção de 9 milhões de m³ de rejeitos do reservatório da UHE Risoleta Neves, com licenciamento ambiental sob a supervisão do Ibama. As mineradoras também devem recuperar 54 mil hectares de floresta nativa e 5 mil nascentes na Bacia do Rio Doce, além de gerenciar áreas contaminadas.