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Movimento quilombola se mobiliza contra ameaças ao Córrego do Felipe

Área alvo de reintegração de posse à Suzano pertence a território reconhecido pelo Incra

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a pasta de Meio Ambiente, Agricultura Quilombola e Comercialização da Coordenação Estadual Quilombola Zacimba Gaba se reúnem nesta sexta-feira (1) com representantes do Córrego do Felipe, em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo, território alvo de reintegração de posse concedida pela Justiça à Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose). A articulação pode ser o primeiro passo para o “repatriamento” da área com a comunidade Angelim, a qual pertence e já reconhecida como quilombola, podendo reverter as ameaças à comunidade.

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A reintegração foi determinada pelo juiz federal Ubiratan Cruz Rodrigues, da Subseção Judiciária de São Mateus. O magistrado estabeleceu “o desfazimento de quaisquer construções e/ou plantações que tenham sido realizado (sic) no local”. Aos quilombolas será aplicada multa de R$ 5 mil “por invasor, caso venham os requeridos descumprir a ordem judicial ou cometer nova turbação ou esbulho”.

Ainda de acordo com a decisão, os quilombolas devem se manter “afastados da área em litígio a uma distância mínima de dois mil metros” e “requer, outrossim, que do Mandado Reintegratório conste, desde que necessária, a possibilidade de requisição de força policial a fim de que seja efetivada a Medida Judicial em tela”.

A reunião desta sexta-feira será para conhecer a realidade e a história do Córrego do Felipe, para posteriormente ser realizada uma maior com os moradores remanescentes, que são aqueles que estão há décadas no local e “viveram todo o impacto da pressão econômica”, conforme afirma João Batista, que é da Coordenação Estadual Quilombola e representante dos quilombolas no Conselho Estadual de Igualdade Racial.

O “repatriamento”, explica, é porque embora Córrego do Felipe faça parte de Angelim, seguiu “carreira solo”, ou seja, não tem muita integração com o restante da comunidade. Essa situação fez com que não tivessem conhecimento a respeito da organicidade do movimento quilombola e, inclusive, contratassem advogados particulares contra a ofensiva ao seu território, em vez de contar com a assessoria jurídica da comissão quilombola.

Ele informa que os moradores chegaram a buscar uma certificação na Fundação Palmares, mas não conseguiram por pertencer a Angelim, que já é reconhecida como comunidade quilombola, embora ainda não demarcada. O “repatriamento”, afirma, tem que ser uma vontade dos moradores do Córrego do Felipe e, no caso da questão judicial envolvendo a reintegração de posse, pode favorecer os quilombolas, reconhecendo-os como remanescentes e “dando uma dinâmica mais de direitos”. João Batista acrescenta que será possível também que a comunidade participe de projetos coletivos, como o fornecimento de produtos para iniciativas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

A reunião de sexta-feira vem reforçar o processo de mobilização contra a reintegração. O agricultor e motorista Renato Guimarães, morador do Córrego do Felipe, afirma que a comunidade acionou o Ministério Público Federal (MPF) e a deputada federal Jack Rocha e a deputada estadual Iriny Lopes, ambas do PT.

Ao todo, 23 famílias habitam o local e, conforme o agricultor afirma, “estão desesperadas”. Ele relata que as pessoas não têm para onde ir e que, por isso, sequer terão condições de levar seus pertences, como os móveis. Renato destaca, ainda, que perderão várias plantações que utilizam para consumo próprio, como coco, banana e mandioca, e também para comercialização, como a pimenta-rosa ou aroeira. No caso desta última, os quilombolas do Córrego do Felipe são referência no plantio.

Histórico de violações

Em sua decisão, o magistrado alega que “a empresa adquiriu o imóvel há mais de 38 anos e sempre exerceu sua posse de forma mansa e pacífica, assim como o possuidor anterior”. Acrescenta que, em 15 de outubro de 2016, “foi constatada pela Vigilância Patrimonial da autora uma invasão efetivada pelos requeridos em parte do referido imóvel, inicialmente em número de 24, que se autointitulam como remanescentes de quilombolas. Desde então, passaram a ocupar indevidamente a área de propriedade da empresa, estando, portanto, caracterizado o esbulho possessório”.

Renato contesta a história narrada na liminar e acredita ser um desrespeito os moradores da comunidade serem chamados de “invasores” no documento, uma vez que as famílias que moram na comunidade estão ali há várias gerações. “Nós não podemos ocupar as terras dos nossos antepassados?”, questiona. A situação, destaca, se assemelha à de quando a Suzano, quando ainda se chamava Aracruz Celulose, se instalou na região, “expulsando os quilombolas”. “Muitos tiveram que ir para a cidade, foram obrigados a mudar totalmente os hábitos de vida”, recorda.

Renato, inclusive, é bisneto de Pedro de Aurora, nascido e criado na região. Pedro, cuja memória permanece viva pelo seu trabalho de preservação da cultura africana por meio da música, em especial o Jongo, é o personagem principal do documentário Mestre Pedro de Aurora – para ficar menos custoso, do cineasta Orlando Bomfim Netto.

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Reprodução

Pedro de Aurora, o documentário, e escritos do notável folclorista Hermógenes Lima Fonseca que destacam o mestre da cultura popular, foram mencionados em um relatório protocolado na Fundação Palmares em 2021, com pedido de reconhecimento e certificação, etapa inicial para o processo de demarcação e titulação do território tradicional quilombola. Contudo, o pedido não foi acatado, já que a comunidade de Angelim, a qual Córrego do Felipe pertence, já é reconhecida e certificada.

O documento descreveu o conflito agrário na região como iniciado na década de 1960, com “a chegada das empresas de plantio e extração de eucalipto trazendo o desmatamento, desertificação dos rios e córregos, envenenamento do solo e compra fraudulenta de terras na região do Angelim. A comunidade foi forçada a abandonar suas terras e migrar para as periferias das grandes cidades”. A partir de 2004, as primeiras iniciativas de retomada das terras aconteceram no Sapê do Norte, embasadas no Decreto 4.887/2003, que reconhece os territórios quilombolas e estabelece os procedimentos de titulação das áreas aos descendentes.

No caso da retomada do Córrego do Felipe, o protagonista foi o neto de Pedro de Aurora, Benedito Santos Guimarães, o Neguinho, cumprindo o desejo de seu avô, que “sempre manteve o desejo de voltar às suas origens”. Benedito continua agindo em prol da comunidade. Foi ele, por meio da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe, que acionou o MPF diante da liminar que concede para a Suzano a reintegração de posse.

No Termo de Requerimento, solicitou que seja interrompida imediatamente a ação de reintegração; que o Incra, Fundação Palmares e a cadeira de Antropologia deem “o devido suporte técnico ao entendimento jurídico, evitando, assim, que interesses ocultos prejudiquem a interpretação jurídica do processo”; e que, durante toda a tramitação, a área fique sobre a tutela da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe.

No documento, é recordado que os quilombolas do Sapê do Norte foram reduzidos a 10%, em pessoas e território, mas ainda lutam pela titulação de suas terras. “Originalmente, o território ocupava uma extensa área entre os atuais municípios de São Mateus e Conceição da Barra e era o lar de cerca de 12 mil famílias, distribuídas por mais de 100 comunidades, expulsas de seus territórios tradicionais por um violento processo de colonização patrocinado pelo Estado, durante o regime militar. A cultura tradicional quilombola foi substituída pelo ‘progresso’ representado por pastos e monoculturas de cana-de-açúcar e eucalipto e, atualmente, resistem no norte do Espírito Santo somente umas 30 comunidades e aproximadamente 1,2 mil famílias”.

Também é resgatada a chegada da Suzano, quando ainda era Aracruz Celulose, pontuando que a empresa trouxe o plantio de eucalipto, “uma cultura nova, que viria a transformar a vida dos agricultores, principalmente aqueles da produção familiar, que induzidos por ganhos momentâneos, terminaram por deixar suas terras em troca do labor oferecido pela Aracruz ou suas contratadas, que durou pouco, e que após o início do processo de mecanização e reorganização da produção, viram estes postos de trabalho serem extintos, deixando milhares de chefes de família, na maioria já idosos, doentes e sem muita qualificação para o mercado de trabalho, no total abandono social”.

Os quilombolas dizem, ainda, que a empresa usou “métodos enganosos e violentos para desalojar nossos antepassados, sem sequer preocupar-se com os graves futuros problema sociais, que agora herdamos e não temos a intenção de transferi-los para nossas gerações atuais e futuras, pois nossa história, contada por nossos pais e avós, dão conta de que de posse das nossas terras, sempre vivemos uma vida de fartura e de excelente qualidade de vida, preservando nossa cultura, a natureza, produzindo e sustentando a economia local, com produção diversificada e exportação, gerando divisas e novos negócios, até que apareceu esta coisa ilusória, que de forma ilegal e violenta, ocupou nossas terras, envenenou nossos rios e derrubou nossas florestas, não respeitando nem nossas liberdades de práticas culturais e religiosas”.

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