Acordo é considerado insuficiente para reparação do crime da Vale/Samarco-BHP
Apesar dos pedidos de revisão apresentados por grupos de atingidos, o acordo de repactuação do crime da Vale/Samarco-BHP foi homologado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nessa quarta-feira (6). Excluídas das negociações conduzidas em sigilo pela cúpula dos governos federal e do Espírito Santo e Minas Gerais, comunidades impactadas denunciaram uma série de insuficiências e violações de direitos no processo de definição do acordo, assinado sob protestos no último dia 25 de outubro.
“A postura do Judiciário foi coesa com esses nove anos do processo de reparação. Foram raríssimas as decisões em favor dos atingidos, o que mostra como ele tem lado e sempre toma decisões que são favoráveis às empresas. Mesmo quando conquistas pareciam surgir, a segunda instância derrubava essas vitórias, como no caso dos pescadores, que viram o direito ao auxílio financeiro individual negado. Nos parece que o judiciário brasileiro estava mais preocupado em se resguardar em relação à justiça inglesa do que em fazer justiça para os atingidos”, critica o coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Heider José Boza.
Firmado em R$ 132 bilhões, o acordo da reparação foi alvo de uma petição encaminhada pelo Movimento e pela Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (Anab) ao Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol) do Supremo.
As entidades apontam cláusulas abusivas que excluem grupos de atingidos, e em especial a exigência de quitação definitiva, que impede outras ações judiciais reparatórias, e violações às Política Nacional de Atingidos por Barragens (PNAB), à Política Estadual de Atingidos por Barragens do Estado de Minas Gerais (PEAB) e à Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, pedem inclusão de atingidos em territórios no sul da Bahia e no Espírito Santo e criação de comitês locais para acompanhar a implementação das medidas de reparação.
Nessa terça-feira (5), data que marcou nove anos do rompimento da barragem de rejeitos de minério em Mariana (MG), o MAB realizou um ato para expor injustiças vividas pelas comunidades impactadas pelo crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP no decorrer desse longo período de impunidade.
Organizações de atingidos da bacia do Rio Doce também mobilizaram na última semana um abaixo-assinado em busca de justiça e denunciaram o desamparo de 100 mil famílias atingida e “toda a sociedade indiretamente, sem os alimentos saudáveis em suas mesas”, diante da precariedade das compensações, como destacaram os autores do documento.
O presidente do Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindpesmes), João Carlos Gomes da Fonseca, conhecido como Lambisgoia, reforça que cerca de 26 mil pescadores atingidos no Espírito Santo enfrentam exclusão do processo de indenização devido a restrições do acordo judicial, que não contempla quem já recebeu indenizações simplificadas, como no programa Novel. Pescadores e comunidades ribeirinhas perderam sua subsistência pela contaminação da água, peixes e vegetais por metais pesados, sem respostas adequadas da Fundação Renova, criada para gerir ações de reparação e compensação, como parte do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC), e extinta pelo novo acordo.
Comunidades indígenas e povos tradicionais também expressaram sua insatisfação com o termo de repactuação, que destina R$ 8 bilhões para recuperação de terras de Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais (IPCTs), após consulta prévia e informada sobre o modelo. Os grupos apontam que, com o modelo já definido sem participação, o processo de consulta perde a função de deliberação, limitando as comunidades apenas a serem informadas sobre o que já foi decidido.
No dia da assinatura da repactuação, indígenas das aldeias Tupinikim e Guarani de Aracruz realizaram um protesto em quatro trechos de rodovias estaduais contra o acordo, que consideram desrespeitoso e insuficiente para atender às necessidades das comunidades, impactadas em seus modos de vida, organização política, segurança alimentar, saúde e outros direitos fundamentais.
Na Grande Vitória, uma manifestação do Movimento dos Atingidos por Barragens nos trilhos e na portaria da Vale no Complexo de Tubarão, na véspera da assinatura da repactuação, reiterou a falta de compromisso da Vale em reparar os danos socioambientais do crime e a impunidade das mineradoras, que seguem lucrando enquanto as comunidades atingidas sofrem as consequências desses impactos. Nos últimos anos, a Vale registrou um lucro líquido superior a R$ 260 bilhões, mas propôs indenizações que, segundo representantes do MAB, não condizem com a situação das famílias afetadas pelo crime.
Na vila de Regência, distrito de Linhares, norte do Estado, a vulnerabilidade provocada pelo modelo de reparação foi denunciada em uma carta de denúncia e nota de repúdio, assinados por organizações como a Associação dos Pescadores de Regência (Asper), Colônia de Pescadores Z6 Caboclo Bernardo de Linhares, Associação de Barra do Riacho (ASPEBR), Associação Ribeirinha de Povos Tradicionais da Foz do Rio Doce- Regência (comunidade de Entre Rios) e Associação de Moradores, Marisqueiros, Pescadores, Artesões do Balneário de Barra Nova Norte (Ampaban). Os atingidos em Regência também realizaram um ato simbólico em outubro último, reunindo lideranças e moradores na área do cais atingido pelos rejeitos da Samarco/Vale-BHP, para registrar a realidade dolorosa que o crime trouxe para a região.
O MAB destaca que, embora as comunidades pesqueiras de Vitória, Grande Vitória e do sul da Bahia não estejam incluídas no atual acordo de reparação, a decisão judicial deixou uma importante brecha. “Se, por um lado, o acordo não os inclui, por outro, nada os impede de pleitear as indenizações de direito por meios próprios”, aponta Heider. Ele considera que essa lacuna no acordo oferece uma oportunidade para que as comunidades continuem na luta pelo reconhecimento e indenização integral que ainda não foram assegurados.
Impunidade
O valor da repactuação a ser pago pelas empresas criminosas foi estimado em R$ 167 bilhões, dos quais R$ 95,5 bilhões deverão ser transferidos ao longo de vinte anos aos cofres da União, estados do Espírito Santo e Minas Gerais, e para 49 municípios afetados, para serem aplicados em políticas de reparação socioambientais. As mineradoras ainda terão obrigações financeiras de R$ 31,5 bilhões para ações de reparação direta, incluindo indenizações e assistência às comunidades impactadas. Além desse montante, as empresas afirmam ter desembolsado cerca de R$ 37 bilhões por meio da Fundação Renova, criada para gerir ações de reparação e compensação, como parte do Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC).
Milhares de famílias ainda lutam para serem reconhecidas como vítimas do crime e garantirem seus direitos no processo de reparação pelo rompimento da barragem de Fundão, que liberou aproximadamente 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, devastando vilarejos, poluindo o Rio Doce e atingindo o litoral do Espírito Santo.
O crime socioambiental, considerado o maior da história brasileira, resultou na perda de 19 vidas, na contaminação de 684 km do Rio Doce e no impacto a mais de 2,5 milhões de pessoas em três estados do país. Diante da impunidade das mineradoras no Brasil, os atingidos acompanham o julgamento da BHP Billiton em Londres, na Inglaterra, na expectativa de que o processo internacional responsabilize as empresas e traga justiça para as populações afetadas.