Produção de estudantes de Comunicação traz à tona meio século de impunidade
No Dia Internacional de Prevenção à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, nesta terça-feira (19), o espaço cultural Thelema, no Centro de Vitória, promove a primeira exibição pública do documentário Araceli Nunca Mais?, que revisita o emblemático caso Araceli Cabrera Crespo, brutalmente assassinada aos oito anos em 1973, e propõe uma reflexão urgente sobre a permanência da violência infantil e a impunidade. A exibição é gratuita, às 19h30, seguida de debate com a equipe de realizadores, formada por alunos de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
O curta documental examina o caso, que se tornou um marco da luta por justiça e proteção infantil no Brasil, mas também de impunidade, que ecoa até hoje. Uma das principais avenidas de Vitória, a Dante Michelini, homenageia a família de dois envolvidos no caso, Dante de Brito Michelini e seu filho Dante de Barros Michelini, o Dantinho. O terceiro é Paulo Constanteen Helal, também de família tradicional e influente.
Segundo as investigações, Dantinho e Paulo teriam raptado Araceli e a mantido em cárcere privado no bar Franciscano, que pertencia a Dante Pai, onde ela foi abusada, drogada e assassinada, na própria avenida, em Camburi. O corpo foi incinerado e jogado num matagal. Após acusações contundentes e condenação em primeira instância, eles foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça (TJES), alegando “falta de provas”. Desde então, as tentativas de mudar o nome da avenida para Araceli também foram em vão, com a conivência de políticos.
O registro mais sintomático ocorreu em 2018, quando o ex-prefeito Luciano Rezende (Cidadania) vetou a realização de um plebiscito, proposto pelo ex-vereador Roberto Martins, para ouvir a vontade da população, sem qualquer reação da Câmara de Vereadores. Ao invés de permitir à população que decida, o poder público municipal inaugurou um memorial e denominou Araceli Cabreira Crespo um viaduto construído ao final da avenida, que passados 50 anos do crime, segue a exaltar dois dos três algozes de uma criança de apenas oito anos.
Essa realidade, segundo Victoria Gomes, que codirige o filme com Isabela Xavier, serve como fio condutor da narrativa e traz à tona discussões sobre o papel da memória coletiva e o quanto as relações de poder e influência impactaram o desfecho do crime. Além disso, ela destaca que o título do documentário, Araceli Nunca Mais?, levanta uma questão essencial sobre a perpetuação da violência infantil: “É um chamado para que o caso Araceli não seja esquecido e para que crimes como o dela não se repitam.”
Américo Soares, responsável pela fotografia e pós-produção, reforça o questionamento sobre o papel da sociedade na persistência do abuso e violência contra crianças e adolescentes. “Esse caso já tem mais de 50 anos, mas ele continua nos incomodando, porque situações parecidas ainda ocorrem. Como jornalista, vejo abusos infantis frequentemente nas notícias, e o filme serve como um lembrete para que a sociedade não normalize esse tipo de violência,” afirma. Ele destaca o simbolismo do filme ser produzido inteiramente por estudantes: “Jovens que querem lembrar a sociedade sobre o que aconteceu e alertar sobre a persistência da violência, na esperança de evitar novos casos”, enfatiza.
Com três eixos principais — histórico, jurídico e social —, o documentário envolve vozes como a do professor Ariel Cherxes, especialista na ditadura empresarial militar, além de advogados que acompanharam o caso, ampliando a análise para além do crime e refletindo sobre o impacto político e a impunidade. A narrativa se desdobra também no debate público sobre a renomeação da Avenida Dante Micheline para Avenida Araceli, com entrevistas gravadas com a população nas ruas.
“Queremos destacar o peso desse caso que, mesmo após 50 anos, permanece atual e relevante. A violência e a impunidade, que ainda presenciamos, mostram que a sociedade falha em proteger nossas crianças”, reforça Américo.
Para Victória, a mensagem central do documentário é refletir sobre a continuidade de abusos infantis ainda presentes no país. “Esperamos que a memória de Araceli seja defendida e casos como o dela não aconteçam nunca mais, mas continuam acontecendo, então, fica o questionamento sobre o quanto a sociedade normaliza esse tipo de violência, principalmente contra crianças e adolescentes”, destaca.
Com a primeira exibição presencial do trabalho, a expectativa da equipe de realizadores é que o público participe ativamente do debate sobre o tema, torne-se mais vigilante em relação à violência infantil, e cobre ações efetivas do poder público.
Livro-reportagem
Para aprofundar as complexidades do caso, os realizadores do documentário recorreram ao livro O Caso Araceli: mistérios, abusos e impunidade, dos jornalistas Katilaine Chagas e Felipe Quintino. A obra analisa 12 mil páginas do processo criminal e aborda a impunidade dos suspeitos, o impacto do caso no contexto da ditadura militar, além de discutir a repercussão midiática e a permanência do crime na memória coletiva. Em 2023, época de lançamento da publicação, a TV Século entrevistou os jornalistas e autores do livro, Katilaine Chagas e Felipe Quintino. Assista a seguir.