Situação no Estado não é diferente da maioria do país; Conaq cobra agilidade
Em uma carta pública, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) cobrou do governo federal o avanço das políticas para titulação das terras tradicionalmente ocupadas. No embalo do Dia da Consciência Negra, a entidade pede que o mês de novembro seja decisivo para dar um novo passo neste sentido. O documento lembra que no último dia 19 de setembro, o presidente Lula titulou 19 comunidades em nove estados, com uma área total de 120 mil hectares.
O local escolhido para a assinatura dos termos foi o município de Alcântara, no Maranhão, onde as comunidades quilombolas foram expulsas pelo projeto de base espacial instalado durante a ditadura militar.
Apesar da carta iniciar falando de esperança, a entidade classificou o cenário como desolador: “Desde 2003, o Incra [Instituto de Colonização e Reforma Agrária] titulou integralmente apenas 24 territórios e outros 34 foram parcialmente titulados. Neste ritmo, o Incra levará dois mil anos para titular todos os quilombos. Não temos esse tempo, porque nossas lideranças estão sendo ameaçadas, humilhadas e assassinadas, agora, enquanto lutam pelo território, enquanto estão na linha de frente da defesa e da preservação”.
A afirmação tem como base um levantamento da organização Terra de Direitos, que estipulou o tempo necessário para titular os 1.857 quilombos que tinham regularização fundiária pendente, se for mantido o ritmo atual.
Outro dado apresentado pela Conaq é estarrecedor: a cada um mês e meio, a vida de uma pessoa quilombola foi eliminada violentamente nos últimos cinco anos. A maioria desses assassinatos teriam sido cometidos por pistoleiros, posseiros e proprietários de terra em conflito com os quilombos. Além disso, têm sido registrados incêndios criminosos e ameaças.
“Nos conflitos pela terra quilombola, é a paralisia do processo de titulação que permite que a violência se intensifique até chegar no resultado que nesse momento é inevitável, a morte das nossas lideranças”. Um caso emblemático é o de Mãe Bernadete, assassinada em 2023 na Bahia. Muitas dessas lideranças se vão sem ver as terras em que viveram e pela qual lutaram serem tituladas. E como reforça a Conaq, os adversários que têm interesse nos territórios historicamente ocupados por quilombolas têm grande poder político e econômico.
A demanda quilombola é por mais diálogo, mais planejamento e mais orçamento para as titulações dos territórios, além da maior desburocratização no processo de regularização fundiária dos quilombos, algo que, no entender da entidade, apenas o governo federal tem capacidade para fazer, tanto por suas atribuições quando pela possibilidade de servir de esteio para o enfrentamento aos interesses dos poderosos nos município e nos estados que ameaçam as conquistas e o reconhecimento quilombolas.
“Precisamos que as instâncias do governo federal nos digam a verdade e aprendam a ouvir nosso povo. Sabemos que o orçamento é um desafios, mas compreendemos que nunca seremos verdadeiramente cidadãs e cidadãos de primeira classe se não houver alocação suficiente de recursos para a garantia dos nossos direitos”
Destrinchando as pautas, a Conaq fala da necessidade de diálogo sistemático do ministro do Desenvolvimento Agrário e o autoridades do Incra com os quilombolas para construção de agendas com objetivos, metas, tarefas e instrumentos de monitoramento; da construção de um Plano Nacional de Titulação dos Territórios Quilombolas, que possa contemplar toda a demanda e organizar o que precisa ser feito e estabelecer um plano razoável para que todas as comunidades quilombolas sejam tituladas; a recomposição das equipes de trabalho e alocação de orçamento suficiente para as titulações; o enfrentamento por parte do Incra e do MDA às oposições políticas locais que dificultam o avanço dos processo; e a revisão de normas do Incra, incluindo a devolução para a Fundação Cultural Palmares da prerrogativa de escuta das comunidades atingidas nos licenciamentos de empreendimentos.
No Espírito Santo, passos lentos
A realidade das comunidades quilombolas no Espírito Santo não é diferente da maioria do Brasil. O tema da titulação das terras foi debatido no Encontro Estadual das Comunidades Quilombolas em São Mateus, no últimos dias 9 e 10 de novembro em São Mateus. Das cerca de 50 comunidades quilombolas do Espírito Santo, apenas uma, a de São Pedro, em Ibiraçu, é titulada.
Das restantes, 22 estão em processo de obtenção da titulação, em esperas que duram muitos anos. O processo que está mais avançado é o de Linharinho, no território quilombola do Sapê do Norte, entre Conceição da Barra e São Mateus, que teve seu reconhecimento oficializado pelo Incra em maio passado, por meio de uma portaria que destina uma área de 3,5 mil hectares para a comunidade, sendo que oito dos 16 limites estabelecidos são com a empresa transnacional Suzano Papel e Celulose (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose). O próximo passo para a titulação definitiva é a definição das áreas a serem desapropriadas, mas o caminho ainda pode ser longo, especialmente por conta da provável resistência da empresa.
Uma dificuldade para o avanço dos processos, segundo João Batista Guimarães, integrante da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Espírito Santo – Zacimba Gaba, é a disputa por terras, especialmente no Sapê do Norte, onde os monocultivos de cana de açúcar e de eucalipto, estes últimos a serviço da Suzano, acumulam grandes lucros a partir de territórios que foram de uso tradicional das comunidades quilombolas, numa tensão que ainda persiste e ameaça as comunidades, junto a ações de fazendeiros que também querem expandir suas atividades.
A carta da Conaq sinaliza a transcendência da luta quilombola por seus territórios e modo de vida: “Sabemos também que a luta não é só por nós, mas pelo futuro de várias gerações e contra o colapso do nosso planeta, que enfrenta o limite de um processo desenfreado de degradação”.