Celebração rememora martírio de Padre Gabriel, assassinado há 35 anos
Se calarem a voz dos profetas
As pedras falarão
Se fecharem os poucos caminhos
Mil trilhas nascerão
A letra de Pão da Igualdade, de Cecília Vaz, aponta o silenciamento das vozes que contestam as desigualdades, prática, infelizmente, muito comum nos dias de ontem e de hoje, vide as histórias de Marielle Franco, Irmã Cleuza, Jean Alves, Paulo Vinha, Verino Sossai, Santo Dias e muitos outros. Às vésperas do dia 23 de dezembro no Espírito Santo, é impossível não lembrar que há exatos 35 anos, nessa data, tentaram calar a voz de um profeta: Padre Gabriel Felix Maire, o Gaby, como era carinhosamente chamado.
Assassinado no areal de Vale Encantado, em Vila Velha, seu corpo foi deixado na Avenida Carlos Lindemberg, em Cobilândia, no mesmo município, para se criar uma narrativa de que ali ele foi interceptado em seu famoso fusquinha, sendo vítima de latrocínio. O crime, de quase quatro décadas, pode até ter sido esquecido pela Justiça, que não o apurou como deveria e o prescreveu, mas não por quem conheceu Padre Gabriel e, até mesmo, por quem não o conheceu, mas ouviu suas histórias e passou a admirá-lo.
São essas pessoas que estarão nesta segunda-feira (23), às 19h, onde o corpo do sacerdote foi encontrado, na Avenida Carlos Lindemberg, lugar no qual, hoje, fica a Praça dos Mártires. Irão celebrar a memória de Padre Gabriel e de tantos outros mártires, ou seja, pessoas que tiveram suas vidas ceifadas por defenderem justiça social. Ali, como diz a música de Cecília Vaz, as pedras irão falar e será evidenciado que, com o assassinato do sacerdote, tentaram fechar os caminhos, mas mil trilhas nasceram.
Tentaram calar a voz do profeta, mas conforme afirma Joana Penha de Souza, do grupo Ecos de Gaby, organizador da celebração, “Padre Gabriel não nos deu voz, mas nos fez descobrir a nossa”, por isso, aquilo que ele defendia é replicado por muitas vozes ainda hoje. E o que ele defendia? Joana responde: “Padre Gabriel está ligado à luta urbana. Ele era o mártir da justiça. Justiça é ter terra, casa, comida na mesa, vida digna. A luta dele foi pela dignidade humana”.
Joana, que conviveu com Padre Gabriel na adolescência, relata que as provocações que o sacerdote fazia possibilitava às pessoas “entender seu papel no mundo”. “As pessoas aprenderam onde suas vozes devem estar, onde devem gritar”, diz, destacando que essas vozes ecoam, na atualidade, nos movimentos sociais, nas pastorais, “nos espaços em que os pés pisam, que é onde você vai brigar por libertação, por justiça, dignidade, onde é preciso fazer diferença”.
Padre Gabriel chegou ao Brasil em 1980. Sua atuação no Espírito Santo, principalmente no município de Cariacica, foi marcada pela intensa participação nas Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) da Igreja Católica. Gabriel incentivava a organização popular, sendo um dos impulsionadores da criação de movimentos de mulheres, culminando na atual Associação de Mulheres de Cariacica Buscando Libertação (Amucabuli). Foi essencial nos movimentos de moradia e em meio aos grupos de juventude, como a Juventude Operária Católica (JOC).
Ainda sobre a classe trabalhadora, atuou na Pastoral Operária, onde coordenou um jornal chamado Ferramenta, feito por operários para operários, que buscava informar os trabalhadores sobre questões como as lutas populares no Espírito Santo, no Brasil e, em menor escala, no mundo, além de ter como outro objetivo a educação para a cidadania.
Portanto, como diz a música de Cecília Vaz, Padre Gabriel comungou “com a luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez, lugar”. Já que, como bem diz a canção, “comungar é tornar-se um perigo”, foi exterminado. Mas “o poder tem raízes na areia, o tempo faz cair”. E a junção de tantas pessoas a cada dia 23 de dezembro, há 35 anos, para celebrar a memória do sacerdote, mostra que a “união é a rocha que o povo usou pra construir”.
“A gente quer manter viva a memória dos mártires da caminhada. Há algum tempo querem apagar. A gente reforça a ideia de guardar essa memória, valorizar os mártires. Quando se respeita essa memória, se mantém a causa viva. Quando se esquece a pessoa, a causa que ela defendia também se apaga”, finaliza Joana.