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Suzano vai à comunidade quilombola acompanhada da PM e de oficial de justiça

Grupo chamou famílias de “invasoras”, mas não chegou a efetivar reintegração

A comunidade quilombola de Córrego do Felipe, em Conceição da Barra, norte do Espírito Santo, acordou na manhã desta segunda-feira (23), véspera de Natal, com uma viatura do Batalhão de Missões Especiais (BME), um oficial de justiça e um representante da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose). O oficial, relata o agricultor e motorista Renato Guimarães, morador da comunidade, afirmou que “cumpria ordem do juiz e que a reintegração de posse poderia acontecer a qualquer momento”.

Foto Leitor

A reintegração a qual ele se refere é a da liminar deferida pelo juiz federal Ubiratan Cruz Rodrigues, da Subseção Judiciária de São Mateus, município vizinho. O magistrado estabeleceu “o desfazimento de quaisquer construções e/ou plantações que tenham sido realizado (sic) no local”. Aos quilombolas será aplicada multa de R$ 5mil “por invasor, caso venham os requeridos descumprir a ordem judicial ou cometer nova turbação ou esbulho”.

De acordo com Renato, o representante da Suzano entrou nas casas, tirou fotos e se referiu aos quilombolas como invasores. Eles foram embora por volta das 11h. “Deixei claro que somos em 24 famílias remanescentes quilombolas, com de 25 a 30 crianças. A terra é dos quilombolas, mas querem nos tirar para colocar eucalipto”, lamenta. O agricultor relata que o ocorrido deixou um clima tenso na comunidade e que, acredita, a Suzano se aproveita do recesso do Judiciário.

Diante do ocorrido nesta manhã, a comunidade acionou os mandatos da deputada federal Jack Rocha (PT) e da deputada estadual Iriny Lopes (PT), o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Desde outubro último, quando saiu a decisão favorável à Suzano, os moradores do Córrego do Felipe vem se mobilizando contra a reintegração de posse.

No dia 12 de dezembro, a comunidade quilombola Angelim I, também em Conceição da Barra, emitiu ao Incra um documento no qual declara que as famílias de Córrego do Felipe estão inseridas no território, já reconhecido pela Fundação Palmares. A medida reforça à Justiça os elementos necessários para suspender a reintegração de posse.

A decisão foi tomada após encontros de mobilização para discutir estratégias para a suspensão. O integrante da Coordenação Estadual Quilombola Zacimba Gaba, João Batista, e os moradores de Córrego do Felipe entenderam que um documento “mais firme”, emitido por “um instrumento potente”, como uma associação, com Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), poderia “reduzir as ameaças à comunidade”.

Outra questão, segundo ele, é o fato de que a declaração menciona o nome de cada um dos moradores de Córrego do Felipe, com seus respectivos endereços, ao contrário da liminar, que está nominalmente em face de uma única pessoa, que se chama Diogo Gomes dos Santos. No entanto, ele não mora mais lá e não tem mais vínculo com o local e seus habitantes.

Renato explica que o Incra só poderá se manifestar a favor dos moradores dessa região a partir de Angelim I, por ser um território reconhecido. Com a declaração feita por Terezino Trindade Alves, que preside a Associação de Agricultores da Comunidade Quilombola de Angelim I (AACQUA), as famílias das duas comunidades voltarão a fazer ações conjuntas. “Com Angelim assumindo Córrego do Felipe, temos esperança de suspensão da reintegração”, destaca Renato.

Renato é bisneto de Pedro de Aurora, nascido e criado na região. Pedro, cuja memória permanece viva pelo seu trabalho de preservação da cultura africana por meio da música, em especial o Jongo, é o personagem principal do documentário Mestre Pedro de Aurora – para ficar menos custoso, do cineasta Orlando Bomfim Netto.

Reprodução

Pedro de Aurora, o documentário, e escritos do notável folclorista Hermógenes Lima Fonseca destacam o mestre da cultura popular e foram mencionados em um relatório protocolado na Fundação Palmares em 2021, com pedido de reconhecimento e certificação, etapa inicial para o processo de demarcação e titulação do território tradicional quilombola. Contudo, o pedido não foi acatado, já que a comunidade de Angelim I, a qual Córrego do Felipe pertence, já é reconhecida e certificada.

O documento descreveu o conflito agrário na região como iniciado na década de 1960, com “a chegada das empresas de plantio e extração de eucalipto trazendo o desmatamento, desertificação dos rios e córregos, envenenamento do solo e compra fraudulenta de terras na região do Angelim. A comunidade foi forçada a abandonar suas terras e migrar para as periferias das grandes cidades”. A partir de 2004, as primeiras iniciativas de retomada das terras aconteceram no Sapê do Norte, embasadas no Decreto 4.887/2003, que reconhece os territórios quilombolas e estabelece os procedimentos de titulação das áreas aos descendentes.

No caso da retomada do Córrego do Felipe, o protagonista foi o neto de Pedro de Aurora, Benedito Santos Guimarães, o Neguinho, cumprindo o desejo de seu avô, que “sempre manteve o desejo de voltar às suas origens”. Benedito continua agindo em prol da comunidade. Foi ele, por meio da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe, que acionou o Ministério Público Federal (MPF) diante da liminar que concede para a Suzano a reintegração de posse.

No Termo de Requerimento, solicitou que fosse interrompida imediatamente a ação; que o Incra, a Fundação Palmares e a cadeira de Antropologia dessem “o devido suporte técnico ao entendimento jurídico, evitando, assim, que interesses ocultos prejudiquem a interpretação jurídica do processo”; e que, durante toda a tramitação, a área ficasse sobre a tutela da Associação de Quilombolas e Pequenos Produtores Agrícolas do Córrego do Felipe.

Foi recordado, ainda, que os quilombolas do Sapê do Norte foram reduzidos a 10%, em pessoas e território, mas ainda lutam pela titulação de suas terras. “Originalmente, o território ocupava uma extensa área entre os atuais municípios de São Mateus e Conceição da Barra e era o lar de cerca de 12 mil famílias, distribuídas por mais de 100 comunidades, expulsas de seus territórios tradicionais por um violento processo de colonização patrocinado pelo Estado, durante o regime militar. A cultura tradicional quilombola foi substituída pelo ‘progresso’ representado por pastos e monoculturas de cana-de-açúcar e eucalipto e, atualmente, resistem no norte do Espírito Santo somente umas 30 comunidades e aproximadamente 1,2 mil famílias”.

Também foi resgatada a chegada da Suzano, quando ainda era Aracruz Celulose, pontuando que a empresa trouxe o plantio de eucalipto, “uma cultura nova, que viria a transformar a vida dos agricultores, principalmente aqueles da produção familiar, que induzidos por ganhos momentâneos, terminaram por deixar suas terras em troca do labor oferecido pela Aracruz ou suas contratadas, que durou pouco, e que após o início do processo de mecanização e reorganização da produção, viram estes postos de trabalho serem extintos, deixando milhares de chefes de família, na maioria já idosos, doentes e sem muita qualificação para o mercado de trabalho, no total abandono social”.

Os quilombolas disseram, ainda, que a empresa usou “métodos enganosos e violentos para desalojar nossos antepassados, sem sequer preocupar-se com os graves futuros problema sociais, que agora herdamos e não temos a intenção de transferi-los para nossas gerações atuais e futuras, pois nossa história, contada por nossos pais e avós, dão conta de que de posse das nossas terras, sempre vivemos uma vida de fartura e de excelente qualidade de vida, preservando nossa cultura, a natureza, produzindo e sustentando a economia local, com produção diversificada e exportação, gerando divisas e novos negócios, até que apareceu esta coisa ilusória, que de forma ilegal e violenta, ocupou nossas terras, envenenou nossos rios e derrubou nossas florestas, não respeitando nem nossas liberdades de práticas culturais e religiosas”.

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