Personagem do congo de Cariacica vira estrela em clipe da banda Gastação Infinita
Um jovem rockeiro corre atrás de um personagem folclórico, com máscara colorida e roupa de folhas de bananeira. Quer recuperar sua guitarra, que a inusitada figura roubou e está tocando por aí, adentrando diversas paisagens do estado do Espírito Santo. Com nuances que só capixabas poderiam entender, o videoclipe da música João Bananeira, da banda Gastação Infinita, traz uma mensagem ampla, que certamente contribui para a obra audiovisual estourar (ou pocar) as bolhas cibernéticas. Em poucos dias, já bateu a marca de 20 mil espectadores. Assista antes de ler a reportagem se quiser evitar alguns spoilers:
João Bananeira, música composta há alguns anos, ganhou o terceiro videoclipe da Gastação Infinita, mas como a banda sinaliza é “o primeiro produzido com verba”, já que contou com apoio de recursos federais da Lei Paulo Gustavo via editais da prefeitura de Vitória. Os outros dois clipes, “Chave do Portão” e “Cornelius” foram feitos com apoio de amigos na “camaradagem”. Curiosamente, o personagem João Bananeira também aparece em ambos.
Vale lembrar que João Bananeira, que hoje dá nome inclusive à Lei de Incentivo à Cultura de Cariacica, é uma expressão única do também único Carnaval de Congo realizado na região rural de Roda D’Água, no mesmo município. É um personagem que remonta aos tempos da escravidão massiva de pessoas africanas e seus descendentes. A história mais contada é de que por ser proibida a participação de escravizados nas festas, um deles haveria se vestido tapando todo o corpo, usando além da máscara e vestido de bananeiras, meias para tampar seus braços, tornando-se assim irreconhecível e virado uma atração burlesca nas festividades.
No podcast Papo de Mestres, o Mestre Tagibe, da Banda de Congo Mestre Tagibe, de Roda D’Água, conta uma versão contrária: na verdade seria o “senhor” branco que gostava das festas de tambores dos negros e encontrou no personagem uma forma de participar sem ser identificado. Ambas histórias são curiosas, e o personagem permanece sendo presença marcante no Carnaval de Congo, festa que parece crescer a cada ano.
Mas porque uma banda de rock formada por jovens insiste em exaltar esse personagem da cultura popular capixaba? A resposta quem nos dá é Hecthor Murilo, integrante da Gastação Infinita, que assina a direção do clipe com Patrick Gomes, e o roteiro com o mesmo e Lara Belfi. “A banda foi criada em 2018 em Cariacica, na minha casa. Moro com meu pai, que sempre participou das festas do congo e sempre me levava quando eu era criança no Carnaval de Congo de Roda D’Água. Ele sempre saía de João Bananeira e a gente sempre teve esse costume de fazer as máscaras aqui em casa mesmo e ir pra lá sair de João Bananeira”, conta Hecthor.
Seu pai, Heuler Murilo, mais conhecido como Pleura, realizou uma oficina de dois dias com jovens que resultou na elaboração das 15 máscaras que fazem parte do último clipe. No primeiro dia, elaborando e modelando a máscara com argila e papel machê. E uma semana depois, após a secagem, realizando a pintura dela.
“A banda tem como proposta a mistura de música estrangeira, com destaque para música americana, australiana, rock alternativo, rock psicodélico, um pouco de indie rock, um pouco de punk, metal, mas sempre com uma mistura da música brasileira no meio, sempre cantado em português. Mas só indo ao show mesmo pra entender”, resume.
Sendo assim, embora para Hecthor a presença do personagem era algo “bem natural” em sua vida, a maioria dos outros componentes não conhecia o mascarado. Nessa pesquisa musical brasileira, buscando conhecer outros sons e aspectos culturais, João Bananeira se impôs à banda – tal qual faz no clipe diante do rockeiro “Alex”, interpretado por Alex Bonini.
Todos integrantes da banda, tal qual o jovem do clipe que queria que seu nome fosse pronunciado em inglês, passou por essa fase de “desamericanizar”, relata Hecthor. É simbólico no clipe que foi a provocação de João Bananeira ao roubar a guitarra, que fez o rockeiro “sair da toca” e rodar por vários lugares. Mesmo com raiva, arejar a vida e enxergar outras paisagens e culturas. E acabar diante da oferta do “ladrão cultural”: a guitarra de volta ou a novidade da casa? Alex optou pela casaca, para depois se dar conta que as duas não são excludentes. Podem até conviver juntas como nos mostraram desde décadas atrás bandas como Casaca e Manimal, expoentes do chamado “rockongo”.
Para Hector, “João Bananeira representa isso: a gente parar de ficar ouvindo só música americana, mudar um pouco nossas influências, buscar algo mais, não só brasileiro como regional.” Essa busca, que representou uma desconstrução para muitos outros rockeiros no Brasil, certamente é o que trouxe identificação para vários espectadores do clipe de diversos outros estados brasileiros, que comentaram ter chegado ao vídeo por indicação do algoritmo do YouTube.
“A gente tinha expectativas altas com esse clipe, mas elas foram ultrapassadas. Demos sorte que o algoritmo ajudou, deu boost sem pagarmos anúncio nem nada. Geralmente o YouTube faz o oposto com nossas coisas. Estamos felizes porque a mensagem está batendo como a gente queria”, conta Hecthor em alusão ao retorno recebido dos espectadores, alguns deles passando a acompanhar a banda também em redes como o Instagram, onde postam shows, ensaios e outras atividades, e Spotify, onde estão as músicas já gravadas.
Mas os planos para a obra audiovisual não terminam nas redes. A banda ainda quer inscrever o videoclipe em festivais de cinema e vê-lo circular pelo país.
Aliás, não é só na virtualidade que a banda divulga a figura de João Bananeira. Para este e outro clipe, alguns lambes, elaborados pela designer Laura Guedes, foram colados por pontos da cidade com a imagem do mascarado. Em “Chave do Portão”, o lambe diz: “Uso obrigatório de máscara”, brincando com a famosa pandêmica, numa obra em que ao invés de PFF2, as pessoas nas ruas usam a colorida máscara de papel machê. Em “João Bananeira”, o lambe colado pelo rockeiro que buscava recuperar sua guitarra diz: “Procura-se João Bananeira”.
Nas ruas, vista por tantos transeuntes que desconhecem a existência da banda e seus videoclipes, as mensagens ganham outros significados e interpretações. Permitem, enfim, gastações infinitas.