Pesquisa aponta carência de acesso a políticas como moradia, emprego e educação
Toda terceira segunda-feira de cada mês, a dona de casa Fabrícia de Souza Ribeiro sai de Tabuazeiro, em Vitória, onde mora, e vai para a comunidade católica São José Operário, em Maruípe, na mesma cidade. Ela é uma das assistidas pela Campanha Paz e Pão, realizada pela Arquidiocese de Vitória por meio do Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica, e que desde 2021 disponibiliza cestas básicas para famílias em situação de vulnerabilidade social.
A Arquidiocese abrange seis Áreas Pastorais: Benevente, Cariacica/Viana, Serra/Fundão, Serrana, Vila Velha e Vitória. A única na qual não há famílias assistidas pela Paz e Pão é a Serrana. Juntas, as seis Áreas Pastorais alcançam os municípios de Afonso Cláudio, Alfredo Chaves, Domingos Martins, Santa Leopoldina e Santa Maria de Jetibá, localizados na região serrana do Espírito Santo; Anchieta e Brejetuba, no sul; e Cariacica, Fundão, Guarapari, Serra, Viana, Vila Velha e Vitória, na Região Metropolitana. A Arquidiocese também conta com cerca de 90 Paróquias e de 1 mil comunidades.
Ao todo, 1,2 mil famílias são beneficiadas mensalmente pela Campanha. A maioria delas, 30,7%, residem na Capital. O segundo município com o maior número de beneficiados é Cariacica, com 28,2%. A Serra conta com 22,4%. Em seguida, vem Vila Velha, com 7,5%. Guarapari, Anchieta e Viana têm, respectivamente, 6,6%, 3,4% e 1,3%. Para ser doador, basta acessar o site da Paz e Pão e se cadastrar, podendo fazer a contribuição, de qualquer valor, de forma única ou mensal, com possibilidade de pagamento via cartões de crédito ou débito, pix e boleto. Também é possível doar cestas ou alimentos para montar uma diretamente para os voluntários, nas comunidades.
A Campanha foi lançada oficialmente durante a pandemia da Covid-19, com o objetivo de sanar a necessidade básica e imediata da alimentação e possibilitar que as pessoas superem a situação de vulnerabilidade social e não precisem mais das doações. A disponibilização das cestas, portanto, é apenas um dos pilares. A Paz e Pão se dedica também a outros dois eixos. Um deles é a formação, com iniciativas como oferta de cursos de aperfeiçoamento profissional. O outro é a incidência política. Neste último, destaca-se a mobilização por políticas públicas de segurança alimentar e nutricional junto às gestões públicas.
Uma pesquisa feita por voluntários da Campanha para traçar o perfil dos assistidos e servir de base para formulação de ações nos três eixos, mostra que a fome não é um caso isolado, sendo consequência da negação de uma série de direitos por parte do Estado, como educação, emprego e moradia. No que diz respeito ao grau de escolaridade, 38,7% dos assistidos têm Ensino Fundamental incompleto. As pessoas com Ensino Médio completo são 20,1%. O total de 14,5% têm Ensino Fundamental completo, 13% não completaram o Ensino Médio e um grande número, 11,7%, não frequentaram a escola. Os que têm Ensino Superior incompleto são 1,1% e 0,9% concluíram a graduação.
Portanto, apenas um pequeno grupo de 21,2% ao menos concluíram o Ensino Médio, ao contrário da maioria, 78,8%, que não tiveram essa possibilidade. O cerceamento do direito à educação pode ser a explicação para a dificuldade de concretização de outro direito: o ingresso no mercado de trabalho. Ao todo, 87,5% dos assistidos estão desempregados, 8,4% estão empregados e 4,1% são aposentados.
No quesito moradia, 45,3% têm residência própria, 37,8% vivem em casa alugada, 12,1% estão em residência cedida e 2,5% moram em casa de parentes. A opção outra foi assinalada por 2,2%, mas não há nenhuma especificação, e 0,1% vive em situação de rua. A pesquisa não traz o percentual de homens e mulheres que recebem as cestas, mas uma das integrantes da coordenação geral da Campanha, Terezinha Cravo, afirma que, no dia a dia do projeto, no contato com os assistidos, uma coisa é perceptível: a maioria são mulheres.
As cestas destinadas às pessoas em vulnerabilidade social cadastradas na Campanha – que não coloca restrição de religião, tendo como critério a necessidade do alimento, e não o credo – são obtidas por meio de doadores diversos, entre pessoas físicas e jurídicas.
Fabrícia soube da Campanha Paz e Pão por meio de outra ação de cunho social da Igreja Católica, a Pastoral da Criança, da qual sua filha caçula, de dois anos, participa. Além do fato de ser mulher, a dona de casa tem outras características que a colocam como o perfil principal dos assistidos pela Paz e Pão, como o baixo grau de escolaridade, pois faz parte da maioria que não tem Ensino Fundamental completo, e o fato de ser a responsável pelo sustento da família, sendo uma das quase 600 mulheres nessa situação.
Ao todo, 24,7% dos assistidos são pai ou mãe solo. Contudo, segundo Terezinha, desse total, apenas dois são homens; os divorciados ou separados são 16,3%. Terezinha aponta que, embora a pesquisa não tenha compilado os dados de gênero nesse estado civil, a maioria também é de mulheres que assumiram a responsabilidade de sustentar a família. “Quando há divórcio, quem segura as ondas é a mulher”, diz.
Apesar de o quesito raça não ter sido contemplado na pesquisa, os voluntários são unânimes em afirmar, também, que entre as mulheres, a maioria são negras, como Francisca. A dona de casa é mãe de cinco. Quatro deles, os de 21, 19, 9 e 2 anos moram com ela. Os mais velhos estão à procura de emprego. Tendo que cuidar de duas crianças pequenas, mas sem rede de apoio para isso, a dona de casa está impossibilitada de trabalhar, tendo no Bolsa Família e na cesta básica recebida mensalmente uma ajuda para o sustento da família.
Uma pequena quantia em dinheiro dada pelo pai da caçula “também ajuda um pouco”, conforme afirma Francisca. A dona de casa não pode contar com o apoio do pai do filho de 9 anos, pois ele morreu, nem do pai dos de 23, 21 e 19, pois a dependência química o levou à situação de rua, sendo, algumas vezes, mais uma boca para ela sustentar, já que quando ele bate em sua porta pedindo comida ela não nega. Evangélica da Assembleia de Deus, Francisca afirma se sentir acolhida pelos voluntários da Campanha. “Eu adoro esse lugar. Nunca tive problemas. Elas [as voluntárias] acolhem a gente”, diz.
Francisca recebe as cestas há quase quatro anos, desde que a Campanha foi criada, provando que, muitas vezes, a situação de vulnerabilidade social não é superada tão facilmente. A Paz e Pão compreende essa realidade e a acolhe, mas seu objetivo é que as famílias tenham autonomia e não precisem mais das doações para se alimentar. Essa é a expectativa de Mariana Kobi. Ela trabalha informalmente, com venda de roupas, e recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os problemas cardíacos prejudicam sua qualidade de vida e a obrigam a gastar dinheiro com remédios quando não os consegue gratuitamente na unidade de saúde.
Separada do marido recentemente, mora na casa do irmão, em Tabuazeiro, onde contribui no pagamento das contas de água e luz. A cesta recebida pela Paz e Pão, afirma, garante a alimentação do mês inteiro, mas seu desejo é, com o passar do tempo, não precisar mais desse auxílio. “Eu já falei com Luciana [voluntária da Campanha], depois que tudo melhorar, eu vou parar de pegar as cestas. A Campanha Paz e Pão é tudo de bom. As pessoas que nos atendem são muito educadas”, elogia.
‘A Campanha Paz e Pão foi essencial’
Assim como Mariana almeja um dia não depender mais da doação de cestas, outras pessoas também desejaram isso e conseguiram concretizar. Uma delas é Eunice Pereira da Silva, mãe de dois filhos, moradora do bairro Santos Dumont, em Vitória, que durante nove meses foi uma das assistidas da Campanha, pois tanto ela quanto seu marido estavam desempregados. “A Campanha Paz e Pão significou muito, foi importante, essencial, principalmente para as crianças”, diz.
Eunice deixou de receber as cestas após o marido conseguir emprego. No momento, ela ainda não arranjou trabalho, mas procura aumentar a renda da família produzindo empadão e peças de crochê para vender. Ao mesmo tempo ela faz curso de Informática para encontrar uma melhor colocação no mercado. De acordo com Eunice, ser assistida pela Campanha Paz e Pão fez com que intensificasse ainda mais sua atuação nos Vicentinos, equipe da Igreja Católica na qual os voluntários, inspirados em São Vicente de Paulo, ajudam pessoas em vulnerabilidade social com ações como doação de alimento e outras necessidades materiais.
Agora, Eunice, por meio dos Vicentinos, identifica em sua comunidade as pessoas que precisam das cestas da Campanha Paz e Pão. Quem pretende seguir o mesmo caminho e auxiliar de alguma forma no sucesso da Campanha é o vigilante Marcelo Nunes Pereira. Morador de Maruípe, em Vitória, ele passou a ser um dos assistidos ao cair da bicicleta, quebrar o fêmur, e ficar impossibilitado de trabalhar. Depois de cinco meses recebendo mensalmente a cesta, voltou ao mercado de trabalho. “Foi ótimo, me ajudava bastante. Se não fosse a Campanha, passaria por dificuldades maiores”, diz.
Marcelo, que mora com a mãe de 72 anos e é responsável pelo sustento da casa, relata que “ainda está se firmando”, pois nos cinco meses nos quais ficou sem trabalhar, as dívidas se acumularam. Mas, passado esse período de reorganização financeira, passará a ser um dos doadores da Campanha Paz e Pão.
A solidariedade também é feminina
Assim como a maioria dos assistidos pela Campanha Paz e Pão são mulheres, o mesmo acontece com os voluntários. Entre eles está Luciana da Silva Barcelos, coordenadora da Campanha na Paróquia São José, em Maruípe, Vitória, e que começou sua atuação quando um padre a convidou para a reunião da Campanha. Lá ela se sentiu “tocada pelos depoimentos das pessoas que já eram voluntárias”. “Então, eu decidi fazer o trabalho. Gostei e estou até hoje”, diz.
Esse se sentir tocada e a consequente atuação como voluntária está ligado à sua própria história de vida. “Eu também já fui pobre, sabe? Eu sei como é que são as dificuldades. Então, pensar nessas pessoas e no que eu já passei é que me fez ficar nesse projeto. Não posso dizer que passei fome, a gente passou necessidade. Nós não tínhamos arroz, a gente comia canjiquinha. A minha mãe fazia polenta. Naquela época, não tinha ajuda do governo. Nós não podíamos ir na casa da vizinha pedir, porque também não tinha. Era igual a nós, eram todos iguais na questão das dificuldades”, rememora.
Na Paróquia São José, os voluntários se reúnem mensalmente para discutir a dinâmica da entrega das cestas. Elas são entregues aos coordenadores de cada comunidade de base, que vêm até a comunidade matriz para levar aos seus territórios. A Paróquia São José conta com doações da própria paróquia e de outras, como a São Francisco, em Jardim da Penha, que destina 60 cestas, e a São Camilo de Lellis, na Mata da Praia, que doa cerca de 50. Ambas são no município de Vitória. Essas doações e outras que possam vir de fora são buscadas por um voluntário.
No dia a dia, os voluntários também buscam angariar mais doadores conversando com as pessoas na Paróquia, incentivando a participação ao falar da Campanha nas missas. Além disso, na festa do padroeiro, a oferta arrecadada durante os nove dias de festejo é destinada à Paz e Pão. Na Paróquia São José há 150 assistidos. Apesar do empenho na busca por doações, ainda assim, não é possível atender toda a demanda, havendo pessoas na lista de espera. “Sempre tem gente à espera, sempre aparecem pessoas que ficaram desempregadas, que foram acometidas com doentes na família, e que precisam, aí procuram o Cras [Centro de Referência em Assistência Social] da nossa região”, diz.
Chegando ao Cras, segundo Luciana, muitas vezes não tem cesta, então a coordenação do equipamento liga para ela e vê a possibilidade de a Campanha auxiliar. “Nós buscamos, na medida do possível, atender essa pessoa até ela conseguir a cesta lá no Cras. Então a gente está sempre socorrendo também esse serviço”, diz a voluntária, que acredita que os baixos salários oferecidos no mercado de trabalho são um dos fatores que fazem com que as pessoas não retornem para ele.
“Tem pessoas que recebem o Bolsa Família. Se assinar carteira perde o benefício. Mas assina a carteira com salário muito baixo para gastar com roupa, levar comida pronta para comer lá no trabalho, se deslocar e outras coisas. Então, às vezes não compensa. Fica como se fosse uma troca, elas por elas. Eu penso o seguinte, o Governo Federal deveria rever essa situação para que as pessoas pudessem, mesmo recebendo Bolsa Família, trabalhar de carteira assinada, manter esse benefício”, sugere.
Embora a demanda por cestas ainda seja grande, já foi maior. Luciana informa que já houve 230 pessoas assistidas. “As pessoas foram saindo, conseguindo trabalho, porque o projeto veio para poder resolver o problema das pessoas que estavam desempregadas na pandemia, do contagiado pela doença. Então, muitas conseguiram retornar ao trabalho, algumas fizeram cursos, porque nós também
divulgamos os cursos que têm na Prefeitura, no Estado, no Governo Federal, para que elas possam se capacitar e conseguir um trabalho”, diz.
Luciana torce para que cada vez mais os assistidos pela Campanha possam seguir o mesmo caminho de Eunice e Marcelo, que hoje não precisam mais das doações. “As pessoas necessitam de um salário melhor, ter direito a uma casa própria, saúde, educação. Agora, o mais urgente mesmo que eu vejo é a questão da habitação, porque o aluguel só sobe. O dono do imóvel não quer saber, ele reajusta. No Alto Tabuazeiro, onde era o antigo Morro do Macaco, é R$ 700 o aluguel do barraquinho, não é casa com
estrutura. Tem que ter uma política habitacional muito rápida e urgente”, reivindica.
Para Luciana, a Campanha não beneficia somente quem recebe as cestas, mas também os voluntários. “Só tem me preenchido. Traz muita alegria, paz e esperança de um mundo melhor e mais justo, mais fraterno, né? É isso que me mantém. É isso que me traz essa alegria de todo dia levantar e pensar que eu tenho que arranjar cestas, que eu tenho que convidar as pessoas para doar, convidar as pessoas para ajudar nesse voluntariado, nesse trabalho de montagem, de arrecadação, de ir buscar nas paróquias, trazer para cá. É isso que me mantém, me motiva”, celebra, convidando mais pessoas a se voluntariar. “Não precisa ser católico para participar”, diz.
Uma outra realidade
Apesar de se identificar com a situação dos assistidos da Paz e Pão por já ter passado dificuldades, Luciana afirma que sua atuação na Campanha possibilitou que conhecesse também realidades que não fizeram parte da sua vida. Ao visitar algumas comunidades, se deparou com cenas que tinha visto somente por meio da televisão. “Nós encontramos pessoas armadas, uma situação de violência, foi um pouco assustador. E é tão pertinho de nós. Mas também tem muita gente boa, solidária, que quer fazer curso, melhorar a região onde mora. A Paz e Pão me proporcionou também conhecer outras realidades”, diz.
A voluntária Dóris Regina Neiva Meirelles, também da Paróquia São José, relata que se depararam, ainda, com a falta de direitos básicos. “Uma coisa é você ouvir falar sobre. Outra coisa é você se deparar com aquela realidade. Uma criança dentro de uma casa, uma senhora com câncer em fase terminal, com a criança pedindo comida. São coisas que você não espera se deparar com aquilo, né? Foi bem difícil”, lamenta.
Contudo, conhecer essas realidades a motiva a defender a Campanha quando dizem que estimula as pessoas a não sair da situação na qual se encontram. “Tem gente que não entende. Aí nós informamos que todas as pessoas cadastradas conosco foram visitadas e a gente conhece a situação que elas estão
vivendo. São pessoas que têm crianças cadeirantes dentro de casa, mães acamadas. São pessoas idosas que não têm mais como trabalhar. Pessoas que têm um salariozinho? Tem, mas que gastam muito com medicação, com outras coisas, entendeu? Gastam com a saúde, que infelizmente o nosso governo não dá conta de assumir tudo isso aí. E aí a gente tem essa explicação porque a gente viu”, diz.
Assim como Luciana, Dóris sente que o voluntariado também traz benefícios para si mesma. “Acho que eu
fico mais feliz em doar do que aquele que está recebendo. A gente sabe que uma cesta não é muita coisa. Mas pra muita gente é o necessário para ter o que comer naquela semana. É gratificante para a gente ter uma cesta para doar. A gente sabe que as pessoas não deveriam ter essa necessidade. Precisaríamos que todos tivessem um serviço, um salário digno. Mas não é assim que acontece. Enquanto isso, nós estamos aqui pedindo muita força a Deus, agradecendo a todos que contribuem, todos que doam, sempre com muita gratidão, porque se não tivesse quem doasse, nós não teríamos o que doar”, diz.
Como a Campanha começou
A Campanha Paz e Pão foi lançada em 2021, mas o coordenador do Vicariato para Ação Social, Política e Ecumênica da Arquidiocese de Vitória, Padre Kelder Brandão, recorda que bem antes disso, em 2018, iniciativas de combate à fome já vinham sendo discutidas na Arquidiocese diante da procura de ajuda por parte das pessoas nas comunidades da Grande São Pedro, em Vitória. De acordo com ele, não havia muitas iniciativas desse tipo, pois durante muito tempo não se via uma situação de fome como a que começou por volta de 2016.
Um dia, narra o sacerdote, uma participante da comunidade católica São Benedito, na região, apresentou uma carta de uma mãe, que agradecia por uma cesta básica doada pela comunidade, que arrecadou os alimentos para ela, pois não tinha nada para dar de comer aos filhos. “A gente aproveitou aquele momento para fazer uma reflexão sobre a fome, sobre o que estava acontecendo nas comunidades. Começamos a pensar na possibilidade de se fazer alguma atividade voltada para esse fim”, diz.
Meses depois, um grupo de pessoas de diversas áreas, entre eles, pedagogos e economistas, o procurou com a proposta de implementar a economia de Francisco e Clara, que traz diretrizes para um desenvolvimento econômico que não esteja em conflito com a dignidade humana, a partir dos documentos do Papa Francisco. “Eles achavam que havia a possibilidade de fazer um trabalho de formação mais sistematizado para difundir as ideias de economia do Papa Francisco, tanto da economia quanto da ecologia. Aí eu falei ‘olha só, eu topo, mas eu tenho uma pauta que é anterior a essa, que é a fome”, recorda.
Para Kelder, a temática da fome dialoga com a economia de Francisco e Clara, por isso, propôs a criação de alguma iniciativa com foco na segurança alimentar e nutricional, o que foi aceito pelo grupo, que começou a pensar em uma campanha de enfrentamento à fome e pela inclusão social. Começaram as reuniões de articulação, suspensas por causa da pandemia da Covid-19. A Arquidiocese acabou lançando a campanha Condividir, embrião da Paz e Pão, para arrecadar recursos para obtenção de alimentos, que durou cerca de cinco meses, com ajuda, principalmente, de empresários.
O processo de formação da Paz e Pão foi retomado de forma online. A Campanha foi lançada em 2021, na Festa da Penha, festividade em homenagem a Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo. “A gente queria ter um evento que proporcionasse visibilidade para a Campanha, até para poder facilitar na arrecadação, na adesão dos voluntários. A gente viu que a Festa da Penha seria um momento bem emblemático, até porque tem uma visibilidade grande, transmitida nacionalmente”, destaca.
Escalada da fome
Padre Kelder acredita que a conjuntura política que se criou a partir de 2013, com as chamadas Jornadas de Junho, quando eclodiram manifestações em todo o Brasil, fez com que, a partir de 2014, a economia brasileira fosse “degringolando”. Ele soma a isso o impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, a aprovação da Reforma Trabalhista, em 2017, durante o Governo Temer (MDB), no qual também foi aprovada a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 55/2016, que congela investimentos em políticas públicas e “acabou com os programas sociais e com as políticas de distribuição de rendas no Brasil”. Somado a isso, tem os quatro anos de Governo Bolsonaro (PL), acrescenta o sacerdote.
“A PEC coibiu a política de distribuição de renda e isso explodiu, fez com que a pobreza aumentasse,
saltasse de um patamar para outro. Houve a suspensão ou limitação do Bolsa Família na época. Isso teve impacto direto nas famílias mais vulneráveis. A própria Reforma Trabalhista também, que causou um desemprego muito grande no Brasil. Houve essa precarização dos direitos trabalhistas, o incentivo ao empreendedorismo, que é uma ilusão muito grande, pois as pessoas acham que de uma hora para outra vão conseguir ter um negócio de sucesso economicamente viável e acabam se endividando. Enfim, é uma ciranda. Isso é uma bola de neve”, diz o sacerdote.
No território que abrange a Arquidiocese de Vitória, Padre Kelder aponta como um exemplo de sucateamento das políticas públicas o fechamento do Restaurante Popular de Vitória, criado em 2005 durante o governo do prefeito João Coser (PT), no bojo da implementação de políticas federais para segurança alimentar. O fechamento se deu em dezembro de 2016, na gestão de Luciano Rezende (Cidadania). O equipamento encontra-se fechado até hoje. A gestão do atual prefeito da capital, Lorenzo Pazolini (Republicanos), projeta a reabertura para este ano. Contudo, como isso não foi discutido com o Conselho Municipal de Segurança alimentar e Nutricional (Comsea), o Colegiado não tem expetativas de que de fato o Restaurante Popular irá reabrir.
“Foi toda uma política não só de sucateamento da assistência aos mais vulnerabilizados, mas de perseguição também. Ações que eram votadas para atender esse público foram redimensionadas, sucateadas, eliminadas, e se passa a ter também uma política de criminalização da pobreza em si”, denuncia.
Formação e incidência política
Padre Kelder explica que o eixo de formação e espiritualidade da Campanha se dá por meio de ações como as de formação para os voluntários e os assistidos. Uma das iniciativas colocadas em prática foi a elaboração de uma cartilha instruindo quem atua no voluntariado a informar, no momento da entrega das cestas, onde é possível ter acesso às políticas públicas de Assistência. No caso dos assistidos, foi feita parceria com o Instituto Federal do Espírito (Ifes) para capacitação profissional por meio de cursos como os de cuidador de idoso, maquiagem, doceiro e salgadeiro.
Os cursos do Ifes são oferecidos em Vila Velha, Serra, Vitória e Guarapari. Em 2024, foi ofertado na Paróquia Santa Teresa de Calcutá, em Itararé, no Território do Bem, em Vitória, o curso de Mecânica Industrial. A incidência política, segundo o sacerdote, “é o tensionamento do poder público para que cumpra o dever constitucional de garantir a segurança alimentar e nutricional das pessoas”. “Temos o dever moral, enquanto cristãos, de dar comida a quem tem fome, mas o poder público tem o dever moral, ético, constitucional de fazer isso. Se não está fazendo, não está cumprindo com a lei, precisa ser cobrado e responsabilizado”, defende o padre.
Entre as ações da Campanha Paz e Pão no eixo de incidência política está o fortalecimento dos Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional, a mobilização para sua criação onde ainda não existem e dar concretude ao seu funcionamento onde a criação já foi aprovada. A assistente social e professora aposentada Ana Petronetto foi representante da Campanha no Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). “Os Conselhos são um espaço de participação, onde se expressam as demandas, se debate políticas públicas, se faz controle social. É onde se desenvolve senso de cidadania, se entende que não basta conceder a cesta básica, mas sim, ter uma política mais ampla”, defende.
Vadilson José de Souza começou na Paz e Pão fazendo a distribuição de cestas na Paróquia Sagrado Coração de Jesus e Maria, em Barcelona, na Serra. Hoje, é representante da Campanha no Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Profissional (Comsea) do município, o qual preside. “Entrei na Campanha para aplicação do Evangelho de Jesus, segundo Mateus. Ele disse: ‘estive com fome e me destes de comer’. Quem fala que é cristão tem que ter o olhar de Jesus Cristo, não pode desconsiderar o pobre”, diz.
Por meio da atuação da Paz e Pão no Comsea, junto aos demais conselheiros, foi inaugurado, em junho de 2024, o Banco de Alimentos Dom Silvestre Luiz Scandian, no bairro Jardim Limoeiro, o primeiro do município da Serra. O equipamento distribui alimentos recebidos através de doações de Organizações Não Governamentais (ONGs), instituições públicas ou privadas. Em quatro meses de funcionamento, o Banco de Alimentos distribui 33 toneladas de comida para mais de 8 mil famílias.
Um dos projetos do Comsea para 2025, informa Vadilson, é a inauguração da primeira Cozinha Solidária da Serra, prevista para o primeiro semestre. Será uma parceria com a Paróquia São José Operário, em Carapina, com distribuição de cerca de 100 marmitas por dia. Outro projeto para 2025 é a criação de três hortas comunitárias, que serão nos bairros Cidade Continental, Central Carapina e Serra Sede. A ideia, explica o presidente do Comsea, é que famílias cadastras na Campanha Paz e Pão e no Cadastro Único do Governo Federal (Cad-Único), por exemplo, possam desenvolver as hortas. Para isso, serão dadas formações e fornecidos insumos necessários, como sementes.
Terezinha Cravo informa que há alguns projetos a serem desenvolvidos em 2025 no eixo de incidência política. Um deles é uma pesquisa sobre as políticas públicas oferecidas em cada município para, por meio da Paz e Pão, fazer um elo entre elas e seu público alvo. Para isso, a proposta é criar subnúcleos de incidência política nos territórios.
“Precisamos fazer com que a nossa população se aproprie disso e faça acontecer. Se não tiver trabalho organizativo nesse sentido, não acontece, passa despercebido. São programas que têm exigências burocráticas, por isso, muitas vezes as pessoas param no meio do caminho. A gente quer estimular o acesso às políticas, pois sabemos o diferencial do Minha Casa Minha Vida, por exemplo, para as pessoas”, diz.
Queda nas doações
A Campanha Paz e Pão, desde sua criação, já doou cerca de 70 mil cestas, mas tem tido queda nas doações e, consequentemente, na entrega para os assistidos. Quando iniciou, eram cerca de 2,5 mil doações mensais, porém, desde 2023, começou a declinar e a média tem se mantido em 1,2 mil. Padre Kelder atribui isso à desmobilização pós-pandemia. “Se por um lado a crise sanitária explicitou e intensificou a fome, também despertou um sentimento de solidariedade muito grande em boa parcela da sociedade. Quando acabou a pandemia, houve uma desmobilização, uma dessensibilização”, explica.
A partir de 2023, aponta o padre, outros fatores contribuíram para essa queda, como a nova política de redistribuição de rendas, a exemplo do retorno do Bolsa Família e outros programas, tanto do Governo Federal, quanto dos estaduais e municipais. “Isso tem feito também com que haja um desestímulo das pessoas para doar, pois entendem que o poder público já está cumprindo parte desse papel. Mas é
importante dizer que esses benefícios, por mais que façam diferença, não são suficientes para impactar ou mitigar os efeitos que a pobreza causa”, diz.
O sacerdote destaca que essa insuficiência ocorre por haver outros problemas sociais para além da fome, como apontado pela pesquisa que traçou o perfil dos assistidos. “Nós temos um problema urbano que é muito, muito sério, que é o de moradia. Então, boa parte desses benefícios são usados para moradia, para transporte e para outras necessidades que também são emergenciais”, diz o coordenador do Vicariato, que tece críticas a quem diz que ninguém mais quer trabalhar por receber Bolsa Família.
“É muito triste quando você começa a ouvir as pessoas dizerem que ninguém quer trabalhar porque está recebendo R$ 3 mil do Governo Federal, como já escutei. Primeiro, que isso é balela, não chega a esse valor. Segundo, não é por isso que as pessoas não querem trabalhar. Eu penso que existe uma série de fatores que implicam na não adesão às vagas de emprego disponíveis, a começar pela própria reformulação que a Reforma Trabalhista faz, que aumentou ilusão de que todo mundo vai ficar rico sendo influencer ou empreendedor”, diz.
Padre Kelder acredita, ainda, que o trabalho braçal também está sendo repensado. “A galera mais jovem já não quer mais fazer esse tipo de serviço, como a gente, dos anos 80, 90, 2000, início desse milênio, fazia. Hoje já não está mais rolando assim em função das novas tecnologias. Então, não é porque está recebendo benefício do Bolsa Família ou qualquer outro benefício que a pessoa não quer trabalhar, mas por causa de uma reformulação, uma ressignificação do trabalho que também está acontecendo nas periferias”, defende.
Uma das estratégias para aumentar o número de doações foi aperfeiçoar o site da Campanha, fazendo com que fique mais interativo, mais fácil para a pessoa se cadastrar para doar e com atualização mais periódica das informações. Terezinha Cravo diz que a comunicação é uma das prioridades. “A gente quer fazer pelo menos três postagens semanais nas nossas redes, como o Instagram. Assim, a gente fica mais presente na internet, pode direcionar as pessoas para o nosso site e, consequentemente, aumentar a contribuição”, projeta.
O microempresário Arnaldo Doná doa mensalmente a quantia de R$ 60 para a Campanha, debitada no cartão. “Vejo que muita gente precisa e passar fome não é fácil. O que faço é pouco, e enquanto não há políticas públicas de combate à fome, a gente tem que fazer esse trabalho”, convoca. Além de pessoas físicas, pessoas jurídicas, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Sindicato dos Ferroviários do Espírito Santo e Minas Gerais (Sindfer), doam recursos financeiros para aquisição das cestas. Segundo Padre Kelder, as pessoas também elaboram maneiras criativas de dar sua contribuição. “Tem gente que faz festa de aniversário, por exemplo, e pede alimentos que se convertem em cestas básicas. Tem comunidades que estabeleceram lá o Domingo da Coleta e recolhem alimentos. Todas essas iniciativas são mais do que bem vindas”, agradece.
Cerâmica pela Vida
Uma das ações criativas que partiram da sociedade civil para contribuir com a Campanha Paz e Pão foi o Projeto Cerâmica pela Vida, idealizado pela aposentada e ceramista Valéria Anchite Martins Rocha, em 2021. A iniciativa consiste em leilões de peças de cerâmica, com arrecadação destinada para a Campanha. As peças são doadas por ceramistas de todo o Brasil, já que o Projeto ganhou repercussão e ultrapassou as fronteiras do Espírito Santo não somente no que diz respeito aos doadores, mas também às pessoas que arrematam as peças. Até o momento foram 131 leilões, com 4,7 mil peças e arrecadação de R$ 797,5 mil.
Os leilões, feitos por meio do Instagram do Projeto, iniciam na primeira sexta-feira do mês, às 18h, e terminam no sábado, às 22h. Ao acessar a rede social para dar o lance, é preciso buscar a peça que deseja e deixar o valor nos comentários. Caso uma pessoa dê um lance maior e a outra interessada na peça quiser cobrir, é preciso propor um novo valor em outro comentário. O vencedor recebe uma mensagem com instruções sobre depósito, frete e entrega da peça. Os ceramistas que quiserem doar seus trabalhos para serem leiloados devem entrar em contato pelo Whatsapp (27) 99945.5128.
Serviço:
Doação para a Campanha Paz e Pão
Onde doar: acesse o site da Campanha, clique no menu doações, faça o cadastro, escolha o valor, a periodicidade da doação e a forma de pagamento.
Outras possibilidades: também é possível doar cestas básicas ou alimentos avulsos entregando-os diretamente aos voluntários da Campanha.