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Filme revela contradições, força política e legado de Chica Chiclete

História da primeira drag queen eleita no Brasil é retratada pelas lentes de Vini Kava

“A Chica, ela é uma pessoa contraditória. Eu acho que isso também é um dos pontos que me chamou a atenção. Determinadas coisas que ela fez no passado, algumas vezes como ela se posiciona, pode soar até mais conservador para hoje, é uma coisa que você só dá conta de entender conhecendo a figura presencialmente”. Com essa percepção, o multiartista Vini Kava me introduz à complexidade do universo drag queen pioneira Chica Chiclete, ícone da cultura LGBTQIAPN+ capixaba retratada em curta-metragem dirigido por ele, com roteiro assinado por Evilyn Quintino.

Meuri Ribeiro

A ideia de contar a história de Chica Chiclete começou há quatro anos, relembra. Inicialmente, a intenção era integrá-la ao universo da websérie Montadas, realizada pela mesma dupla, que explora as vivências de drag queens do Espírito Santo. “A única drag queen, assim, das antigas, que eu conheci pelo menos, era a Chica. Por quê? Porque ela passava de caminhão…aqueles caminhões de trios elétricos, na época das paradas, o caminhão passava do lado da minha casa, em Coqueiral [de Itaparica]”. No entanto, a profundidade da trajetória da artista logo mostrou que era preciso construir uma narrativa própria que culminou no curta-metragem, viabilizado com recursos da Lei Paulo Gustavo, totalizando R$ 100 mil. As filmagens ocorreram durante o Carnaval Capixaba, entre 17 e 21 de fevereiro deste ano.

O curta Chica Chiclete tem previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano. Vini almeja estrear em circuitos como o Festival do Rio ou o Festival de Gramado, antes de chegar ao público do Estado no próximo ano. A narrativa costura depoimentos da própria Chica e de pessoas próximas com dramatizações, trazendo para as telas jovens lideranças da cena ballroom atual para interpretar momentos marcantes da história.

Meuri Ribeiro

‘Farol pra comunidade’

A lente percorre momentos decisivos, desde a infância e adolescência, marcadas pela repressão da ditadura militar, o impacto da epidemia de Aids nos anos 1980, até sua ascensão como “um farol para a comunidade LGBTQIAPN+ capixaba”, descreve o realizador, e a histórica eleição como a primeira drag queen a ocupar um cargo político no Brasil, na Câmara de Vila Velha, pelo Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) – hoje MDB.

Vini destaca a habilidade de articulação social de Chica Chiclete. “Sempre se deu muito bem com todas as classes, era uma pessoa muito articulada: foi amiga de políticos, frequentava as grandes casas, era próxima das famílias tradicionais e abastadas de Vitória, e ao mesmo tempo transitava com naturalidade pelas favelas. Ela ainda mora no pé do morro. Essa vivência com diferentes camadas sociais e o fato de estar presente nas grandes festas da cidade fizeram com que ela se tornasse uma figura muito influente”, analisa. Para ele, esse caminho fez com que ela se alinhasse a grupos mais tradicionais na política. 

A passagem pela política institucional é retratada no curta a partir da perspectiva da própria artista, que a descreve como um período amargo. Em 2004, lançou sua candidatura a vereador em Vitória pelo PMDB, e em 2008, pelo mesmo partido, candidatou-se ao mesmo cargo em Vila Velha, e tornou-se suplente, com mais de 2 mil votos no pleito. Assumiu o mandato em 2012, substituindo Andinho Almeida, e renunciou em 2016. “Acho que um fator que acaba agravando a situação é que ela se esforçou muito, acho que isso frustra ela também, ela tentou tanto, mas quando conseguiu não foi através de voto somente, mas porque outro vereador abriu mão”, explica o diretor. 

Quando chegou na Casa, “quem foi eleita foi a Chica Chiclete, mas quem tomou posse foi Francisco Spalas, que é o nome do artista, que dá corpo e voz a Chica Chiclete”, destaca, citando as palavras da própria artista. A dualidade entre a persona artística e a figura política de Francisco Spala parece ter sido um dos pontos de fricção. Na Câmara, Chica percebeu as limitações de sua atuação.

“Ela estava com uma visão de que iria, sabe, ressignificar as coisas, aquela energia para mudar o mundo, foi um pouco frustrada por isso. Tanto pela questão burocrática, inúmeros trâmites necessários e uma posição um pouco técnica, de criar leis para o nosso município, então, eu percebo que ela ficou um pouco frustrada com isso” Ao que tudo indica, Chica não pensa mais em retornar à vida política, e dedica-se atualmente ao seu ateliê.

Meuri Ribeiro

Bar da Chica

Apesar das frustrações no campo institucional, o filme direciona o foco para o que Vini Kava define como o grande orgulho da vida de Chica: o Bar da Chica. “No filme, escolhemos quais batalhas queríamos lutar e quais a Chica queria que mostrasse. A trajetória política dela, como ela mesmo diz, é algo que não se sente reconhecida, diz que não foi o momento mais feliz da vida dela, algo que gostaria de ser lembrada”, observa. 

A carreira política de Chica é mencionada apenas brevemente no final do curta, que tem como foco principal o Bar da Chica, espaço que considera seu maior orgulho. O Bar da Chica, que encerrou suas atividades, foi o quinto bar aberto por ela ao longo de sua vida, sendo a Queen, localizada na Ilha da Fumaça, outra casa icônica mencionada por frequentadores antigos. No entanto, o Bar da Chica se consolidou como um refúgio crucial para a comunidade LGBTQIAPN+ em Vila Velha. 

“Durante um período, ela conseguiu fazer com que as casas dela pudessem ter um espaço livre, para a comunidade, que ali dentro daquele espaço as pessoas se expressassem da forma que se sentiam mais felizes, confortáveis, seja através da sua identidade, ou em uma expressão artística, como fazer drags, ou pelas trocas que aconteciam ali”, compreende o realizador. Em um período pós-ditadura, marcado pela repressão policial, o Bar da Chica era uma ilha de liberdade que foi catalisadora para a comunidade LGBTQIAPN+ da região.

Aids e ditadura

Fora dos holofotes e da vida política, sua influência também se manifestava no engajamento em ações concretas de solidariedade, especialmente em momentos de crise, como a epidemia da Aids. “Nas duas entrevistas de amigas que ela gostaria que estivessem dentro do curta, elas começam descrevendo Chica como uma pessoa que ajuda as pessoas sem pedir nada em troca. Parece Jesus gay, Jesus drag, quando começam a descrever”, faz piada. 

Sem que o pai soubesse, ela levava para o hotel dele pessoas que, muitas vezes, eram abandonadas pelas famílias e largadas na porta de hospitais para morrer, relata. Surpreendentemente, o pai reagiu de maneira positiva e fechou uma ala inteira do Hotel Spala para que ela pudesse continuar oferecendo esse cuidado. 

Posteriormente, também dedicou seu tempo aos asilos, onde levava apresentações e presentes aos idosos. “Ia montada, brincava. Ela diz que a velhice é muito solitária, então levava presente nessas datas em que muitas pessoas ficam sem receber uma visita da família, uma coisa simples, mas que ela dizia que enchia os olhos desses senhores e senhoras de felicidade. Então era essa pessoa que fazia o que podia para ajudar”, afirma.

A própria trajetória da artista também foi marcada por momentos traumáticos que moldaram sua identidade e visão de mundo. O diretor aborda a repressão que ela sofreu durante a ditadura militar. “Na década de 1980, tinha por volta de 18 anos, e foi presa. Antes, ela se identificava como travesti, tinha começado o processo de transicionar, tomar hormônios, deixar o cabelo crescer. Quando foi presa, rasparam o cabelo dela, deixaram a barba dela crescer, e a impediram de tomar hormônios. Ela ficou lá durante três ou quatro meses, foi onde aprendeu a costurar”, compartilha. Na análise do diretor, após ter a feminilidade interrompida, talvez tenha achado mais fácil viver no corpo de um homem. “Penso eu que via a drag como uma forma de expressar a feminilidade que existe dentro dela”, avalia. 

Além da prisão, também enfrentou a violência nas ruas. Quando era mais jovem, se prostituiu, apanhou na rua de outras travestis e construiu laços, inclusive com autoridades para evitar a repressão. “Ela já era amiga dos policiais que prendiam, tinha um esquema. Era outra época, mas, em relação à ditadura, acho que sofreu diretamente, e isso teve influência direta sobre a vida dela”, reflete. “Ela ficou com um pouco de medo de como iríamos mencionar os militares, então escolhemos representar a época por meio de elementos como as roupas e a trilha sonora”, explicou.

Vini Kava e Evilyn Quintino. Foto: Meuri Ribeiro

Legado

Outro elemento importante da história é a ligação entre a artista e o Carnaval. “Ela fez quase todas as fantasias da escola que subiu neste ano para o Grupo Especial, a Andaraí, que também a colocou como destaque principal no último carro”, revela. 

Em fase de pós produção do curta-metragem, o diretor espera transmitir o legado de Chica Chiclete em reconhecimento a essa uma figura multifacetada que, com suas contradições e sua inegável influência, pavimentou o caminho para as futuras gerações da comunidade LGBTQIAPN+ no Espírito Santo e no Brasil. “Nós concluímos o filme nesse sentimento. Ela abriu o espaço para que as outras pudessem caminhar”, exalta.

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