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Estudo mostra impacto da desinformação em favelas

Engajamento em fake news é menor que em classes altas, diz pesquisador

Alta conectividade, predominância da desinformação, uso da internet para entretenimento, maior confiança nas informações de meios tradicionais de comunicação, identificação de desinformação e métodos de checagem. Esses são alguns pontos que mostram a complexidade da análise da pesquisa “Tecnologia e Desinformação no Território do Bem”, recém-lançado em formato e-book pela editora Milfontes. A obra está disponível para download no site Favela Digital.

O estudo foi realizado em nove bairros e comunidades de Vitória, que fazem parte do Território do Bem, região com mais de 30 mil habitantes, composta em boa parte por aglomerações subnormais ou favelas, fruto de ocupações populares entre as décadas de 1920 e 1970. A pesquisa foi coordenada por David Nemer, André Sobral e Lorraine Cardoso Dias.

Moradores-pesquisadores contribuíram com o projeto. Foto:Thamyres Valadares

O projeto “Tecnologia e Desinformação no Território do Bem” foi fruto da participação ativa de 14 moradores da região, depois de receberem treinamentos específicos para atuação como pesquisadores comunitários, coletando dados por meio de um questionário aplicado a partir de metodologias e amostras nas residências de 404 moradores da região entre fevereiro e abril de 2024.

Para David Nemer, que é professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, o estudo aponta que o Território do Bem é um local extremamente conectado, principalmente por meio de dispositivos móveis, já que 92,8% dos entrevistados pela equipe de campo possuem smartphones com acesso à internet. Quase 90% usam a internet de quatro a cinco dias por semana, sendo que mais de um terço passa mais de 15 horas diárias online.

“Não se tem tanto computador em casa, por uma série de fatores, como a disponibilidade das próprias operadoras para oferecer serviços lá. As pessoas acabam suprindo isso pelo tablet e, principalmente, pelo celular”. A maior parte do tempo é usada nos aplicativos Whatsapp e Instagram, refletindo o uso dos brasileiros em geral, segundo o professor. “Mas também há um grande consumo de informações de fontes tradicionais da mídia tradicional, como jornais e televisão. Isso é muito importante e interessante”, considera.

Pesquisador da Universdiade de Virgínia, David Nemer, foi um dos organizadores do estudo. Foto: Vitor Taveira

O pesquisador aponta que o estudo mostra que o principal uso é de redes sociais, streaming de música e filmes, o que aponta que prevalece o entretenimento. “Também se usa para trabalho, pesquisa, escola, mas o predominante é o lado de entretenimento”. 

David Nemer acredita que a pesquisa ajuda a desmistificar diversos estereótipos quando o assunto é tecnologia e moradores de favelas. “Muitos julgam as favelas como centros de desinformação devido à falta de educação de qualidade. Mostramos que isso é um mito, e que o engajamento com desinformação dessa população é bem menor do que em classes sociais altas. O estudo só reforça como a apropriação da tecnologia e os engajamentos e impacto da desinformação são muito baseados nas territorialidades e nas culturas locais”, diz.

Desinformação de fora e dentro do território

O estudo apontou que 77,6% dos respondentes falaram que já receberam algum tipo de desinformação sobre assuntos diferentes ao território, sendo o principal meio o WhatsApp (20,54%), o que de acordo com o professor, indica que boa parte da população consegue identificar e distinguir informações falsas, sendo que a maioria acredita que elas afetam a opinião pública e um quarto dos entrevistados dizem que já mudaram comportamentos devido a informações falsas.

Também uma maioria dos consultados (61,4%) confia mais em portais de notícias tradicionais do que em informações de amigos ou familiares. Porém, embora a maioria dos moradores aponte diferentes formas de checagem das informações recebidas, causa preocupação o fato de que mais de 35% dos entrevistados não têm costume de checá-las, tendo respondido que não fazem isso “Nunca” ou “Quase nunca”.

“Este panorama revela como o Território do Bem está profundamente conectado, mas vulnerável à desinformação, especialmente via redes sociais. A confiança em fontes tradicionais coexiste com a influência de redes pessoais, criando um ambiente complexo para o combate às desinformações”, indica o estudo.

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Divulgação

O que é importante distinguir são os temas relacionados com a desinformação quando se refere a informações sobre o próprio Território do Bem ou sobre temas vindos de fora. Nestes casos, predominam assuntos como Saúde, incluindo Covid-19 e vacinas (42,5%), e Política (39,3%).

A jornalista e ex-deputada Manuela D’Ávila, orientanda do doutorado de David Nemer, comentou em suas redes sociais o resultado da pesquisa: “Não é na favela que nascem as fake news sobre política, vacina ou golpes digitais. Muitas vêm de fora, de grupos organizados, canais bem financiados, perfis com selo azul e acesso às grandes redes. A desinformação é um projeto – e não uma falha individual”, escreveu. “A culpa não é do povo. A culpa é de uma narrativa preconceituosa que ainda insiste em nos fazer acreditar que inteligência e pensamento crítico têm CEP”.

Quando se trata em desinformação sobre Território do Bem, embora menos pessoas afirmem já terem recebido notícias falsas do que sobre temas externos à região, o impacto delas parece ser muito direto na vida dos moradores. Os temas principais identificados são Criminalidade de Violência (13,37%) e Segurança Pública (12,12%), com questões que envolvem toques de recolher relacionados ao tráficos de drogas, tiroteios, assassinatos e operações policiais. 

Isso impacta diretamente na vida dos moradores. “Devido ao teor da desinformação, muitas pessoas deixaram de sair de casa. Trabalhadores não foram ao emprego, estudantes faltaram à escola e até mesmo consultas médicas foram evitadas. Embora esse impacto possa parecer pequeno ou pontual, ele tem consequências severas para uma população vulnerável e marginalizada. Para muitos, faltar ao trabalho significa perder a renda do dia ou até mesmo correr o risco de perder o emprego, independentemente do motivo. Do mesmo modo, crianças que dependem da merenda escolar para garantir uma refeição diária podem ficar sem acesso à alimentação adequada”, enfatiza a pesquisa.

Jornalismo e influenciadores comunitários

O projeto “Tecnologia e Desinformação no Território do Bem” teve como um dos objetivos a formação e implementação de um laboratório sócio-tecnológico voltado para a realização de pesquisas sobre o Território do Bem, com foco em temas relacionados à tecnologia, comunicação e cidadania.

O laboratório recebeu o nome de CalangoLab, em referência ao Calango Notícias, jornal comunitário com foco na região, que busca divulgar notícias que desmistifiquem e mostrem outro lado das comunidades que a imprensa tradicional não mostra por conta de seu enfoque na questão da violência que contribui para estigmatizar o território.

A pesquisa aproveitou para avaliar sobre o conhecimento do Calango Notícias entre os entrevistados. O resultado mostra que a maioria ainda não conhece, uma parte já ouviu falar, mas uma parcela pequena acompanha o site e/ou o Instagram do projeto.

“Dados de pesquisa apontam que, apesar dos esforços do Calango Notícias em produzir e disseminar informações relevantes para os moradores do Território do Bem, a absorção desses conteúdos ainda enfrenta desafios. Fatores como o acesso limitado a meios de comunicação, o alcance da distribuição e o engajamento do público local influenciam essa dinâmica”, aponta o estudo.

Jornalismo comunitário e influenciadores locais são estratégias de combate à desinformação no Território do Bem. Foto: Thamyres Valadares

No entanto, a pesquisa indica que o jornal continua buscando estratégias para ampliar seu alcance na comunidade, formando parcerias e fortalecendo a participação popular. Também destaca que o veículo também repercute para fora dos bairros e comunidades do Território do Bem. “Muitas pessoas que visitam o território ou participam de atividades artísticas e culturais tomam conhecimento dessas iniciativas por meio do jornal”, o que fortalece um dos objetivos do meio, que além de criar uma identidade sociocultural positiva para moradores, também busca impactar públicos externos mostrando os aspectos positivos do território e atraindo visitantes para promover novas oportunidades e fortalecer a economia.

Uma estratégia que faz parte das ações do CalangoLab, a partir destes resultados da pesquisa, é a formação de influenciadores comunitários. Dez moradores receberam uma capacitação com esse foco. “Esses agentes locais desempenham o papel de multiplicadores de informações confiáveis, contribuindo para o combate à desinformação e para a promoção de narrativas positivas sobre o Território do Bem”, explica o projeto.

Além da formação, foi realizada uma avaliação do alcance e do impacto das notícias divulgadas por esses influenciadores após o treinamento, que será divulgada posteriormente em um relatório complementar focado na atuação dos influenciadores comunitários.

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