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‘Resolução do CFM fragiliza saúde da população trans’

Médico do Centro de Referência em IST de Vitória critica restrição de hormonização

Divulgação

Uma resolução (nº 2.427/2025) do Conselho Federal de Medicina (CFM), que estabeleceu novas diretrizes para o cuidado de pessoas trans no Brasil, tem gerado críticas entre especialistas e movimentos sociais e ações judiciais. A medida restringe a hormonização cruzada a maiores de 18 anos, exigindo um ano de acompanhamento psicológico e endocrinológico para início da terapia hormonal, e impõe limites à atuação de profissionais de saúde. Para o médico de família Rafael Machado, que atua no Centro de Referência em Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) de Vitória, no Parque Moscoso, a resolução representa um retrocesso no atendimento à população trans.

Enquanto o Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), oferece acompanhamento apenas a maiores de 18 anos, o centro de referência do Parque Moscoso é um dos poucos no Espírito Santo que atendem também adolescentes a partir de 16 anos. A nova normativa, porém, ameaça esse acolhimento. “A resolução do CFM fragiliza nosso suporte, é tão incisiva que gera receio entre profissionais sobre o que ainda podem ou não fazer”, afirma.

Com atendimento voltado para cerca de 300 pacientes transgêneros, entre eles adolescentes a partir de 16 anos, o centro oferece um suporte baseado no cuidado integral. Para Rafael, a abordagem do CFM assume “uma base muito patologizadora”, tratando a vivência trans como uma doença, e não como uma expressão da diversidade humana. “Não é um processo de patologia, é um processo de vida, social, como qualquer outro”, diz

Entre os pontos mais preocupantes, o médico destaca a proibição da hormonização antes dos 18 anos, mesmo com autorização dos responsáveis — algo que antes era possível a partir dos 16. “Atendo pessoas trans a partir dos 16 anos. Com a autorização dos pais, era possível iniciar o tratamento hormonal. Agora, isso fica proibido”, lamenta.

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Ele também critica o novo requisito de um ano de acompanhamento psicológico e endocrinológico antes do início da hormonização, o que, segundo ele, “passa a ideia de que é preciso validar se a pessoa é realmente trans”. Para Rafael, “isso é extremamente patologizante”. “É como se o papel do médico fosse atestar a identidade do paciente, e não de oferecer cuidado”, pontuou.

A escassez de serviços especializados para a população trans no Brasil agrava ainda mais a situação imposta pela nova resolução. “Os serviços de atendimento à população trans, no geral, no contexto procederal, são super escassos”, aponta. O médico argumenta que, em um cenário de acesso já dificultado, exigir um ano de acompanhamento prévio não faz sentido, pois muitas pessoas sequer conseguem acessar os serviços com a rapidez necessária. “O próprio acesso já dá uma prova do tempo, no sentido de que dificilmente a pessoa chega tão rápido, pela escassez mesmo desses serviços no Brasil”, completa.

A resolução também veda o uso de bloqueadores hormonais em crianças e adolescentes para o tratamento de incongruência ou disforia de gênero, com exceção de casos de puberdade precoce ou outras condições endócrinas com indicação científica. Rafael Machado explica que os fármacos utilizados para o bloqueio hormonal já são amplamente utilizados em outras situações pediátricas, como na puberdade precoce. No caso de adolescentes trans, o bloqueio serve para dar tempo para que a pessoa não sofra com as alterações corporais da puberdade, com a possibilidade de interromper o processo caso essa seja a decisão futura.

A consequência mais grave, segundo ele, é o aumento dos casos de auto-hormonização. “Se a pessoa já está usando hormônio por conta própria, ela já está em terapia hormonal. Mas a resolução, ao dificultar o acesso ao cuidado médico, empurra mais pessoas para isso”, alerta. Ele relata que já recebeu adolescentes de 15 anos que realizavam o processo sem o suporte adequado. “Nesses casos, atuamos com redução de danos. As pessoas acabam usando doses elevadas pela ansiedade com os resultados. Muitas vezes compram hormônios no mercado clandestino, sem garantia de procedência. No caso dos homens trans, é necessário receita médica para comprar testosterona em farmácia”, explica.

“Seria uma ilusão minha, como profissional de saúde, achar que eu tenho capacidade de proibir alguém de fazer algo. Nosso papel é fazer uma redução de danos, tentar orientar da melhor forma possível para que ela, se realmente continuar a fazer, passe da forma mais segura”, reitera.

O estudo “População Trans na Grande Vitória”, realizado pelo Instituto Jones em 2018, já evidenciava o alto índice de auto-hormonização na comunidade trans capixaba, com 77,4% dos entrevistados que usavam ou já usaram hormônios sem acompanhamento médico contínuo. Os pesquisadores defendiam que os serviços de saúde precisam romper com o viés moralista e garantir o acesso seguro e adequado ao processo transexualizador desde cedo, para evitar futuros problemas de saúde, como transtorno hepáticos provocados por dosagens hormonais excessivas.

A abertura do CFM para ouvir as diversas categorias interessadas antes da publicação da resolução também é questionada pelo profissional. A resolução ainda estabelece quais especialidades médicas estariam autorizadas a atuar nos processos de afirmação de gênero. Rafael contesta esse ponto à luz da própria legislação médica. “Não existe nenhum procedimento na medicina que seja exclusivo de uma especialidade. Isso fere o que está previsto na lei do ato médico”, pontua. Ele aponta que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) divulgou nota crítica à resolução, assim como as outras especialidades médicas se manifestaram em nota conjunta.

A resolução também estabelece a idade de 21 anos para procedimentos que tenham como consequência a esterilização, o que é considerado uma “defasagem” para que pessoas trans consigam acessar cirurgias como a vaginoplastia ou a faloplastia. Rafael argumenta que equiparar o cuidado da saúde trans à lei de esterilização não faz sentido, pois o objetivo dessas cirurgias não é a esterilização, mas sim a afirmação de gênero e o bem-estar do paciente.

Além disso, a resolução restringe a mamoplastia masculinizadora ou o implante de silicone para maiores de 18 anos, o que contrasta com a realidade de adolescentes cisgênero que realizam procedimentos similares antes dessa idade. “Então, novamente, uma balança que não pesa de uma forma, mas são esses dois pesos. E o desejo por mudanças corporais para afirmar gênero não é uma exclusividade de pessoas trans. Pessoas cisgêneras fazem isso todos os dias”, compara.

Acesso à saúde

A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) estima que cerca de 2% da população brasileira seja trans. No Espírito Santo, o acesso a serviços especializados para a população trans geralmente se inicia nas unidades básicas de saúde, que realizam o encaminhamento para o Ambulatório Multidisciplinar de Diversidade de Gênero (ADG) do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam) ou para centros de atendimento localizados em Vitória, Vila Velha e Serra.

A coordenadora do ADG/Hucam Neide Aparecida Tosato Boldrini tem alertado sobre as limitações estruturais e as longas listas de espera para atender a demanda, que é muito superior à capacidade do serviço. Para ela, um dos maiores obstáculos que o ambulatório enfrenta é a necessidade de mais funcionários e de um concurso para ampliar a estrutura limitada, que impossibilitou a realização de cirurgias de redesignação sexual desde 2019

Um estudo realizado por pesquisadores do Hucam também evidenciou as dificuldades de acesso pleno aos serviços de saúde pela população transgênero, relacionadas à estigmatização e discriminação. Entre os participantes da pesquisa, 46,2% relataram ter sofrido discriminação durante o atendimento, como o desrespeito ao nome social e à identidade de gênero, e 44,2% afirmaram não ter recebido orientações adequadas sobre a transição de gênero nos serviços públicos de saúde.

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