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A Piedade quer voltar a sorrir em paz

Fotos: Vitor Taveira

É mais fácil falar da presença do que dos vazios e silêncios. O medo ainda existe, embora passeie invisível entre os becos, vielas e as casas abandonadas, algumas com marcas de fogo e destruição. Nos últimos meses, lideranças comunitárias estimam que cerca de 250 pessoas deixaram o bairro da Piedade por conta dos conflitos do tráfico de drogas.

Mas ali num pedaço de terra a brincadeira acontece e o papo flui entre moradores e visitantes. As crianças distribuem sorrisos. É domingo no morro da Piedade, entre o Centro de Vitória e o parque natural da Fonte Grande. De repente chegam por todos os cantos da quase-praça várias pessoas estranhas. Roupas cinzas e negras, olhos cansados, caminhar arrastado, passam pelos moradores sem cumprimentar. 

Ninguém está realmente assustado. Todo mundo sabe que se trata de teatro. O espetáculo de rua Revoada, parceria entre o Grupo Z e o Repertório Artes Cênicas, saiu do asfalto e subiu o morro para uma apresentação em sua primeira temporada.

A obra apresenta dança e expressão corporal. Quando a música para, o silêncio ecoa. Há ruídos distantes vindos da cidade, conversas de ali perto no morro e cantar de pássaros, pois estamos na beira da floresta. A música volta, os corpos se movem em cena, mecânicos, artísticos, angustiantes. Em alguns momentos as crianças riem dos movimentos e expressões, em outros dispersam o olhar para qualquer lugar, mas na maioria do tempo tem os olhinhos vidrados enquanto os artistas chocam seus corpos ou os jogam no chão. O palco é o piso de cerâmica e cimento de uma antiga casa desapropriada pela prefeitura.

Ao lado, num terreno inclinado, uma horta comunitária se reergue depois de muitas interrupções. Acima, uma casa simples de tijolo possui uma placa dizendo: Circo. Um casal de artistas foi morar ali e (se) diverte (com) a criançada. Abaixo, o Instituto Raízes, um casa simples e muito bem cuidada em cada detalhe. É um ponto de cultura e memória que voltou a abrir as portas para servir de camarim aos artistas. Tem ficado fechado desde a escalada da violência. As pessoas não circulam muito mais pela comunidade.

Muita gente deixou a Piedade, alguns com pistola na cabeça, outros mesmo sem ameaça direta sentiram que não dava para permanecer. Quem ficou, sai menos de casa. À noite, todos se recolhem, contam os moradores. Não há espaços de lazer lá em cima. Em janeiro, ali perto, no Morro do Moscoso, um dos poucos locais de convivência, uma mini-pracinha, foi palco de uma tragédia, com três jovens assassinados enquanto lanchavam. 

A comunidade tenta se reerguer. Recebeu visita das autoridades que devem pensar em estratégias, mas os resultados costumam ser lentos. No entanto, coisas acontecem agora. Com apoio de grupos artísticos e projetos de intervenção urbana, planejam transformar o espaço que virou palco improvisado e também um outro local que se tornou depósito de lixo e entulho e tem uma vista espetacular da cidade. Entre este local e a pequena Igreja Católica, que aconteceu o assassinato dos irmãos Ruan e Damião, que atuavam em projetos sociais e culturais.

Eu não queria falar de morte. Queria falar da horta que renasce com suas plantas onde foi entulho. Do morador que cuida com esmero das plantinhas que decoram o arredor de sua casa. Não queria falar do sangue que escorre pelas escadarias, mas do sangue que corre em nossas veias enquanto os grupos de teatro e dança se apresentam. E depois quando as crianças colhem cacau do pé e pulam corda, antes de se enfileirar para comer cachorro-quente com um refrigerante laranja.

Eu queria falar sobre o que eu vi naquela tarde de domingo. Mas não posso ignorar os vazios e silêncios, que me contaram em sussurros.

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