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‘Ação de sucesso’ da PM provoca ferimento de 18 pontos em professora

A “ação de sucesso” da Polícia Militar do comandante-geral da PM do Espírito Santo, coronel Edmilson dos Santos, custou 18 pontos no joelho da professora de Filosofia Maria Cecília de Souza, uma das cidadãs que tentaram assistir à sessão da Assembleia Legislativa da última segunda-feira (15). Em entrevista a jornais capixabas, avaliando a conduta policial nesse dia, o coronel mais uma vez gabou-se de uma barbárie. 
 
Maria Cecília acertadamente previu uma sessão concorrida para a votação do decreto suspendendo a cobrança de pedágio da Terceira Ponte. Achou por bem chegar mais cedo para assegurar um assento na galeria e às 13h30 estava na porta da Assembleia. Eram cerca de 14h20 quando a Casa do Povo liberou as portas aos manifestantes. Sua vez estava próxima quando cerraram as portas.
 
Os seguranças não deram comunicado ou justificativas. Ainda havia cerca de 60 pessoas do lado de fora. Houve tumulto. De repente, um jato de spray de pimenta oriundo de dentro da Assembleia dispersou o grupo. A ação de segurança recrudesceu quando soldados da polícia saíram do prédio da Assembleia. Formando uma barreira, vociferavam: “Vaza, vaza!”. 
 
Maria Cecília vazou. Fazer o quê? Desceu serenamente a escadaria. Mas “serenamente”, num contexto tão, assim, peculiar? Sim. Ela achou que estava tudo sob controle. Afinal o que mais faria um muito bem paramentado grupo de soldados contra apenas 60 cidadãos? Quando viu uma jovem correndo ao seu lado, até se espantou com a azáfama: “Gente, pra que isso? Ela pode até se machucar”. 
 
Ela seguia escada após escada quando sentiu uma forte pancada na perna. Ok, nada que lhe estorvasse os movimentos. Uma dor então latejou forte: ela parou, se agachou e viu um buraco na calça de malha, à altura do joelho direito. Poucas escadas depois, ela só continuou porque um homem lhe ofereceu amparo: a dor crescera gradativamente até desandar num fenômeno opressor que parecia ter lhe amputado a perna. 
 
      
 
Dezoito pontos fecharam um talho medonho provocado pela polícia militar. Era o primeiro dia de férias de Maria Cecília, professora-coordenadora de uma escola municipal de Vila Velha. Acorda de segunda a sexta às 5h30. Só dorme por volta das 23h, após cuidar das duas filhas e estudar para o mestrado que faz na Ufes.
 
O cirurgião examinou a ferida e constatou a inexistência de estilhaços, razão pela qual achou que Maria Cecília fora alvejada por uma bala de borracha disparada a pouca distância.
 
Ela depois mostrou a foto da ferida aberta a um policial civil, que concluiu se tratar de um projétil, mas sem determinar qual. No momento da pancada, a professora dava as costas para a barreira policial. Por isso, Maria Cecília acha que o mais provável é que tenha sido uma bomba de gás lacrimogêneo. Lançada por armas disparadoras, a bomba é uma estrutura de metal que explode para liberar o gás. 
 
Maria Cecília foi amparada até o banco do ponto de ônibus, onde sentou para aliviar a agonia. Aqui deu com mais um indício da tese da bomba de gás lacrimogêneo: o homem que a apoiara agora esfregava as mãos nos olhos lacrimejantes. 
 
A mesma boa alma se recompôs e levou-a no colo até uma viatura policial. A ferida foi encaminhada ao Quartel do Corpo de Bombeiros, de onde, finalmente, a levaram para um hospital da Unimed.
 
Na viagem, um bombeiro a interpelou: “Quem te deu a informação para levar para o Corpo de Bombeiros?”. Ela explicou: os policiais haviam recebido a orientação via rádio. O bombeiro: “Não há essa orientação. Você deu sorte que a gente tinha acabado de chegar de uma ocorrência”.
 
O exame dos bombeiros concluiu que o caso era despachá-la direto a um cirurgião. Uma vez na sala de pequenas cirurgias, Maria Cecília recebeu algumas ampolas de anestésico na ferida. O médico narrou o procedimento: “É um ferimento bem grande. Uma parte foi queimada e a gente tem que remover, senão necrosa. Primeiro vou anestesiar, para depois limpar bem a região. Após a remoção das partes queimadas, vou fazer a sutura”.
 
– “Ainda vai precisar de dar ponto?”. 
 
– “Vai. Vai precisar de uns 18 pontos aqui”. 
 
Maria Cecília atravessou o procedimento apertando fortemente a mão do enfermeiro. Deixou o hospital apenas às 19h com um atestado médico de 15 dias. As aulas na escola recomeçam nesta segunda-feira (22). Para não prejudicar a aluna, uma professora do mestrado propôs uma aula via skype. Não deu certo.
 
A remoção dos pontos deve acontecer no final da próxima semana. A dificuldade de locomoção é visível: ela anda, porém arrastando a perna direita. O primeiro banho desde segunda veio apenas nessa quarta (17). Ela tem que ir diariamente ao hospital trocar os curativos, uma experiência insuportável pela dor advinda. O pai deixa o trabalho mais cedo para levá-la.
 
Maria Cecília vive à base de repouso, tomando antibiótico de seis em seis horas, anti-inflamatório de oito em oito e analgésico em caso de dor. Suas serelepes filhas, uma de três e outra de cinco anos, por ora estão com a avó.  
 
Logo após deixar o hospital, seguindo orientação de membros da Ordem de Advogados do Brasil no Espírito Santo (OAB-ES), fez Boletim de Ocorrência numa delegacia e realizou parcialmente exame de corpo de delito no Instituto Médico-Legal (IML). 
 
Na delegacia todos já sabiam seu nome e conheciam o caso. Lá, também, encontrou os policiais que a socorreram. Foi cumprimentada e recebeu o número da ocorrência, horário e número da radiopatrulha. No IML, o exame de corpo de delito não foi completo porque faltou o laudo médico do cirurgião da Unimed. Maria Cecília afirma que “está difícil” consegui-lo, apesar de ter um documento da Polícia Civil solicitando o laudo.
 
Mobilizações estudantis não são exatamente uma novidade para essa filósofa. Em 2010, graduou-se na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Foi coordenadora do Centro Acadêmico e coordenadora da Executiva Nacional dos Estudantes de Filosofia. Hoje faz mestrado em Educação Física, também na Ufes, e após passar em concurso, labuta desde janeiro como professora-coordenadora. 
 
O que o povo capixaba viu nas imediações da Assembleia Legislativa é a oposição simétrica ao que Maria Cecília ensina em sala de aula. Aqui, oferece as primeiras noções de democracia aos alunos. Na segunda, viu-se uma ação policial flagrantemente desproporcional: havia cerca de 100 manifestantes. 
 
Ainda assim a polícia dialogou à sua maneira: com bombas, palavrões e balas de borracha. A OAB-ES emitiu nota condenando, “de forma veemente”, a repressão policial. Também em nota, a Arquidiocese de Vitória também repudiou a força bruta. A mesmo posição tomou o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado do Espírito Santo e a Federação Nacional dos Jornalistas (Sindijornalistas-ES).
 
Maria Cecília realiza-se não apenas nos protestos. Ela deu aulas a alunos de segundo e terceiro anos de escolas públicas da Grande Vitória, ministrando cursos de ética, filosofia política e noções de trabalho. E, em cada ato, tem encontrado um ex-aluno. Na quinta-feira (11), encontrou um; na segunda, outro. “É uma coisa que me dá um prazer desgraçado”. Prazer que nenhuma bomba ainda conseguiu calar.

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